Coerência é a alma da Turma dos Judokinhas

Atribuição recente da Bandeira da Ética pelo IPDJ é uma consequência natural de um projeto coerente em termos de responsabilidade social. Entrevista a Filipa Cavalleri e Renato Kobayashi.

@JudoMagazine | 20 de maio 2020

No judo, como noutras áreas da vida quotidiana, confirma-se que a conversa tende a ser como as cerejas. Viemos junto de Filipa Cavalleri e de Renato Kobayashi para aprofundar o tema da Bandeira da Ética, certificação atribuída pelo IPDJ que a Turma dos Judokinhas renovou recentemente, e acabámos por revisitar momentos relevantes da história do judo recuperando alguns modelos que marcaram a progressão da modalidade desde a sua fundação.

A complexidade para além da ética

Não fossem Filipa Cavalleri e Renato Kobayashi, ambos, portadores de experiências fundamentais associadas à emergência dos novos modelos de organização do judo que colocaram  no seu núcleo estratégico a relação dos clubes com a escola e a nossa abordagem ao tema da ética no desporto teria ficado “confinada” às fronteiras filosóficas sobre as quais a  bandeira-símbolo assenta. Fomos mais longe porque as causas e as consequências destes processos estão imbuídas de uma complexidade que quisemos dissecar.

O judo nas escolas

Renato Kobayashi o atleta olímpico dos Jogos de Seul em 1988, que atingiu os oitavos de final na categoria de -60kg, dedica a sua expertise, em dupla com a também atleta olímpica Filipa Cavalleri, ao desenvolvimento de um projeto que visa uma presença cada vez mais significativa da modalidade no universo escolar.

“O modelo dos fundadores do judo em Portugal, entre os quais se destaca o meu pai Kyioshi Kobayashi, assentava no clube. O conceito dominante tinha a sua origem no Japão e nas bases implementadas pelo Mestre Kano. O sentido geral de atuação era atrair mais atletas para os clubes. Essa abordagem dominou as formas de organização da modalidade durante muitos anos. A ruptura com essa lógica resulta de experiências que eu próprio vivi e que derivam de ligações a processos pedagógicos fora das quatro paredes do dojo nomeadamente a partir de convites que me foram dirigidos pelo Colégio Moderno e pela Academia Militar” começou por enquadrar o tema Renato Kobayashi.

Ladrões de atletas

A acusação de “estar a roubar atletas aos clubes” foi apenas um dos argumentos dos opositores da abertura às escolas que começou no início dos anos 80. Mas a convicção que essa dinâmica era a correta cimentou uma atitude e uma visão que acabou por ganhar terreno e consolidar-se.

“No fundo o que imperou na fundação da modalidade sob os auspícios de mestre Jigoro Kano foi a afirmarção da vertente educativa vocacionando o judo para as escolas com a missão de promover a educação física geral. Ao contrário das artes marcais da época no Oriente, cuja finalidade era demonstrar a superioridade de uma em relação às outras, o judo situou-se num campo claramente educativo e pedagógico” relembrou Renato que fez rapidamente a ligação à estratégia de desenvolvimento da Turma dos Judokinhas cujas origens estão profundamente marcadas por esta relação umbilical com os colégios e a prática do judo em contexto escolar.

Um projeto coerente

“Sempre existiu esta ponte entre os colégios e os clubes. Numa fase inicial nós, o Renato e eu, orientávamos a prática da modalidade em vários colégios e acabávamos por indicar os clubes mais próximos aos alunos que pretendiam continuar a praticar. Essa cumplicidade existia e acabava por funcionar, mas a continuidade do conceito que fomos desenvolvendo não estava assegurada e esta necessidade levou-nos a criar o clube que fornece consistência e coerência ao projeto que desenvolvemos” adiantou-nos Filipa Cavalleri que pormenorizou o processo de crescimento e de afirmação da Turma dos Judokinhas relembrando que “os elementos determinantes do nosso conceito prendem-se com o respeito por uma progressão adequada e ajustada a cada jovem que esteja de acordo com os seus interesses, as suas motivações e as suas condições físicas e psicológicas. Queimar etapas para outros fins não está na nossa metodologia e as metas que traçamos são articuladas com as restantes dinâmicas pedagógicas do colégio onde os treinos ocorrem” afirmou ainda Filipa Cavalleri, muito categórica nesta coresponsabilização no planeamento que é realizado período após período letivo.

A mais-valia identitária

Renato Kobayashi defende que “não vale tudo no judo. E temos que o afirmar pois não acompanhamos algumas práticas que adulteram a essência da modalidade quer na dimensão identitária quer ainda na banalização do judo como espaço de recreação para os mais jovens. Não podemos suprimir de forma simplificadora aspetos essenciais como as saudações, as denominações das técnicas, as formas de estar e funcionar no tapete, porque a mais–valia do judo está associada a valores e à sua natureza educativa”,

O desenvolvimento humano

O quadro para a apresentação da vertente mais social do projeto Turma dos Judokinhas estava desenhado. Afinal de contas tudo o que é valorizado e reconhecido por entidades terceiras tais como o BPI, a Fundação La Caixa e o IPDJ está em coerência com um projeto mais global cujo enfoque é a progressão dos jovens nos seus contextos de vida valorizando a solidariedade e a convivência positiva nos seus grupos de pertença em detrimento de uma abordagem unilateral à competição e aos resultados desportivos.

Competição e social

“Claro que os atletas que têm potencial para um projeto mais competitivo podem e devem estabelecer objetivos nesse campo. Sabem que podem contar com um enquadramento técnico para o efeito de dois atletas com provas dadas como é o nosso caso. Não cortamos as expetativas a nenhum dos nossos atletas, mas não é a nossa prioridade absoluta colocá-los no pódio” sintetizou Filipa Cavalleri que nos indicou ainda um conjunto de ações ligadas à responsabilidade social do projeto:

– a organização de uma reserva de fatos de judo em segunda mão em boas condições de uso que são obtidos por doação da parte daqueles que vão crescendo e deixam de os poder usar. A iniciativa serve para apoiar os atletas com menos recursos;

– o incentivo ao voluntariado e à organização conjunta de eventos, com a participação de todos, sem exceção (tais como o Dia Mundial da Criança que mobiliza jovens e as suas famílias);

– a formação de treinadores e professoras para metodologias integradoras e inclusivas;

– o programa “Ajudo a integrar” no quadro do qual são realizadas ações de combate às descriminações e são aplicados os princípios do “ninguém deixa de praticar judo seja porque razão for”.

Ajudo a integrar

Importa sinalizar que o “Ajudo a integrar” , cuja formulação é particularmente feliz por incorporar no Ajudo a palavra judo, foi selecionado entre centenas de projetos no âmbito do concurso BPI-La Caixa vertente Infância, constituindo um reconhecimento nacional, mas também internacional das iniciativas sociais da Turma dos Judokinhas cuja Bandeira da Ética foi, recorde-se, reconduzida pelo IPDJ por mais dois anos.

Entrevista realizada a distância via Zoom.us | CR

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