ALMA JUDOCA |Os filhos são capazes de nos oferecer lições de coragem e de resiliência.

JUDO Magazine | 20 de outubro 2020 | O papel dos pais no judo e a dinâmica peculiar que se desenvolve na relação triangular de que fazem parte, conjuntamente com o treinador e o atleta, constituem matéria relevante no estudo do desenvolvimento estratégico da modalidade.

Dar a palavra aos pais para que estes se posicionem no debate que Tiago Silva lançou na sua derradeira crónica na JUDO Magazine surge como principal objetivo deste desafio lançado a Victor Brito que se apresenta como Pai da judoca Raquel Brito e do ex-judoca Gonçalo Brito.

São pequenos episódios com uma estrutura a namorar timidamente a fábula que contêm aquele delicioso final: moral da história, fórmula tida por alguns como moralista e excessivamente orientadora de futuros comportamentos na vida em sociedade mas que, para o caso, nos convém e nos convida a uma validação da função de complementaridade dos pais neste sistema complexo do judo competitivo. A intervenção dos pais surge, pela pena de Victor Brito, como indutora de reflexão, ou seja, ultrapassa largamente o mero incentivo emocional ao filho/a e integra dimensões mais cognitivas nos processos de sistematização das experiências por parte daqueles atletas.

Acompanhar é preciso, viver…

por Victor Brito

Quando se vê um arvoredo o importante não são as árvores, mas os espaços entre elas. Óscar Niemeyer, arquitecto – Rio de Janeiro, 1907 – 2012.

Há cerca de dezasseis anos que a minha esposa e eu acompanhamos os nossos dois filhos em provas e estágios de judo, como muitos outros pais. Primeiro como benjamins, depois como infantis, iniciados, juvenis, cadetes, juniores e seniores.

Julgo que na grande parte das vezes, os pais poderão ajudar a vincar e ser uma mais-valia no que respeita à resiliência e autoestima do filho/a atleta. Talvez possam desmontar alguns bloqueios mentais ou mundanos que vão acontecendo no seu percurso desportivo. Noutras das vezes, são eles que nos oferecem lições incríveis de vida.

Episódio 1

2010 | infantis | prova promovida pela Associação Distrital de Lisboa.

Estávamos um pouco atrasados para chegar ao Estádio 1º de Maio, em Lisboa. Estávamos em cima da hora e algum nervosismo apoderou-se da minha filha. Percebendo o facto disse-lhe:

  • Olha, estamos a chegar, vai correr sempre bem. Ou ganhas ou aprendes (risos)!
  • Aprendes …?
  • Sim. Quando perdemos também aprendemos. É essa também a essência do desporto.
  • Olha, está bem, mas há um pódio à minha espera! É melhor ganhar! (Ela tinha 8 anos).

Reflexão

Por acaso venceu o torneio, mas se perdesse talvez recorresse às palavras dos pais. Felizmente, para ela, a autoestima estava em alta.

Episódio 2

Nove anos depois | Final do Campeonato da Europa de Cadetes | Varsóvia | Polónia, Junho de 2019 |

Foi vencendo combate atrás de combate. Por fim estava na final com a nº1 do mundo, sendo a Raquel a nº2 nessa altura.

Após um combate inicialmente equilibrado, a meio deste, levou um excelente ippon da italiana. Assim, foi medalha de prata e consequentemente Vice-campeã da Europa nos -48kg.

A tristeza inicial por ter perdido a final, foi provavelmente reportada ao episódio do Estádio Nacional, quando tinha 8 anos. Provavelmente terá surgido na sua cabeça a palavra – Aprendi.

Por fim referiu:

  • A Scutto foi melhor. Mereceu ganhar!

Reflexão

O seu olhar talvez tenha procurado os pais no público, quando perdeu a final, mas também quando subiu ao pódio nessa altura (quero acreditar nisso). Nós estávamos lá. Estávamos em Varsóvia com ela. Nesse momento, estava feliz ao lado do Mestre Pedro Jacinto.

Episódio 3

16 de Outubro de 2020 | Ida para o estágio da Seleção Nacional em Coimbra.

Chegados à bilheteira, na Estação do Oriente às 13h50, procuramos comprar o bilhete para o comboio das 14h09. A Raquel tinha de estar em Coimbra, sem falta, às 16h30 para fazer o teste do Covid-19.

Fomos surpreendidos com: Já não há bilhetes!

  • E agora?
  • Anda daí! Levo-te de carro. Vamos falando e divertimo-nos até lá.

Reflexão

Mais um momento precioso para estar com a minha filha, tornando um potencial problema num momento agradável e tranquilo. Simplesmente passámos 2h de viagem a conversar.

Episódio 4

Maio de 2018 | circuito internacional como cadete 2º ano

Assistimos a uma prova verdadeiramente incrível por parte da Raquel. Julgo que o segundo combate com a atleta azeri, teve um golden score com mais de 8 minutos e por fim venceu. Depois na disputa do bronze com a italiana Sara Russo, teve excelente e repetiu a vitória.

No final aquando da entrevista referiu:

– Venci com o coração! O Mestre Pedro Dias ajudou-me a vencer!

Raquel Brito com Pedro Dias

Reflexão

Pensei. É isso! Que lição. Vencer com o coração.

Episódio 5

2012 | prova em Almada | Raquel tinha 10 anos

Em pleno combate e para não levar ippon, colocou a mão no chão. A imagem que relembro é horrível. O que retenho é de ver o cotovelo a saltar. Depois o Mestre Vasco Branco com ela nos braços e eu a atravessar o tatami. Aquele momento pareceu-me uma eternidade.

Já no hospital, a médica diz-lhe:

  • Raquel vamos ter de operar o teu braço, mas vai correr tudo bem!
  • Dra. Faça isso! Tem de ser, mas faça rápido!

Reflexão

Aí percebi a guerreira que tinha, no corpo e na cabeça daquela miúda de 10 anos, franzina e com pouco mais de 30 kg. Na adversidade limite os nossos/as filhos/as são capazes de nos oferecer lições de coragem e de resiliência.

Episódio 6

2014 | Gonçalo no seu 2º ano de cadete | Sintra

Quando o Gonçalo disputava uma prova caiu e saltou o cotovelo esquerdo. A história repetia-se pela segunda vez, agora com ele. A minha esposa e eu ficámos aterrorizados. Mas ele manteve toda a calma possível, dentro do contexto.

Já na ambulância, questionei:

  • Filho, está a doer-te muito?
  • Pai, calma! Tudo isto é um momento mau que vai passar em breve.

Reflexão

Nessa altura terá sido um verdadeiro judoca. O judo tinha-lhe ensinado a suportar a dor e a manter a calma possível numa situação adversa. Percebi a mensagem daquele rapaz com 16 anos. Procurava tranquilizar os pais sem agudizar o drama. Reforçamos o que tínhamos aprendido, enquanto pais em 2012.

Episódio 7

2019 | Confederação do Desporto de Portugal | escolha na categoria de jovem esperança feminina.

Aquando da entrega do troféu à vencedora (atletismo), a escolha não beliscou em nada o seu fantástico percurso.

  • Pena! Pensei que tinha hipóteses de vencer.
  • Repara, só o facto de estares aqui é uma vitória.

Reflexão

Estar naquele momento a competir com um atleta como o João Félix, do futebol, que foi transferido do Benfica para Espanha por milhões de euros, será certamente uma enorme vitória, para um desporto onde os pais pagam geralmente tudo. No judo, está só quem gosta e não quem quer ganhar muito dinheiro com a modalidade. Está-se por paixão e por coração!

Episódio 8

2020 | Entrada na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa

Fui dar-lhe a notícia ao treino no Sport Algés e Dafundo, o clube do seu coração. Treinava na altura só com o seu colega, o Arthur Gottheiner (outro atleta fantástico e com um percurso semelhante ao da Raquel).

  • Ouve, levanta-te do tatami. Entraste na primeira escolha!
  • Pai, não sei o que dizer, apenas que estou muito feliz!

Reflexão

É sempre possível conciliar uma carreira DUAL de alto rendimento com os estudos académicos. A disciplina e o querer, são os ingredientes para conseguir e, quero crer, que o judo ajuda muito nesse objectivo. O apoio da família, dos treinadores e do clube é fundamental para uma carreira atrativa e é certamente onde o atleta pode encontrar o seu ponto de equilíbrio.

Nunca imaginei há 15 anos atrás estar neste momento a escrever este texto. Por eles e pela paixão que fui ganhando ao judo, aos 55 anos estou a fazer o 1º Dan. A Raquel ajuda-me, enquanto faz em paralelo o 2º Dan. Com as minhas notórias dificuldades agradeço-lhe por ser a minha uke de serviço.

Fotos © Victor Brito

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