OPINIÃO | El Pibe, um extraordinário exemplo das imperfeições humanas

JUDO MAGAZINE | 2 de dezembro 2020 | Opinião | Tiago Silva
E como no dilema do ovo e da galinha, nunca se saberá se foi a mão que concedeu a Maradona o estatuto de divindade ou se foi por tê-lo, que a usou para fazer justiça aos deserdados da vida e aos miúdos dos bairros de lata de Buenos Aires.
Tiago Silva convida-nos a olhar para o génio, a arte da rua, o sonho, a alma, a humildade, o divino, as habilidades emocionais, os abismos, os erros, os fracassos, a controvérsia, a negação do politicamente correto, pensando nos jovens atletas, no judo e na honestidade no desporto.
E se Maradona fosse também um exemplo?
por Tiago Silva*
Apesar de se considerar como um dos princípios elementares da pedagogia aquele que considera que se elogia em público e critica-se em privado, continuamos a viver um pouco no país onde se segreda o elogio e berra-se o insulto. Vimos com a morte de Maradona uns quantos proclamarem o péssimo exemplo deste como desportista, com virtudes futebolísticas muitos ensombradas por um passado conturbado e mergulhado na dependência da cocaína e na sua deriva ideológica revolucionária. Um aluno meu chegou mesmo a questionar-me: se o tomava como exemplo.
Como calculam hesitei um pouco na resposta, fui-lhe dizendo que para mim, tudo começou naquele célebre verão de 1986, em que apesar de muito novo lembro-me do Argentina – Bélgica e os dois golaços daquele pé esquerdo argentino dos deuses, como o despertar para uma nova infância, para aquilo que seria essencial na vida de milhares de crianças espalhadas pelo mundo.
Na verdade, até ao dia da sua morte era fácil baterem em Maradona, quantificar um sem número de acções ambíguas em sua carreira ou questionar inclusive o seu fair play. Mas havia e há algo de divino em relação ao seu legado, porque quase tudo o que me importa trazer para a discussão agora, prende-se com o que dizem os seus companheiros de ofício, alguns deles reputadíssimos treinadores de hoje em dia.
Ou veja-se, por exemplo, a maravilhosa homenagem que equipa All Blacks prestou a este pequeno génio de apenas 1,65 m.
Só a sua estatura seria hoje, à luz da pressão selectiva do futebol moderno, motivo de exclusão da maioria dos clubes top mundial.
O mais arrebatador jogador da história do futebol
Como se viu, a dimensão de Maradona é tão planetária que extravasa fortemente o universo do futebol. Mas é no olhar e na voz de pessoas como: Zidane, Guardiola, Klopp, Gary Lineker ou Mourinho que encontramos aquilo que muitos, felizmente, proclamam – é provavelmente o mais arrebatador jogador da história do futebol. Aliás, o ex-internacional Inglês recordava por estes dias, que no campo aquando do golo do século sentiu vontade, de pela primeira vez aplaudir um golo do adversário. Estive em Buenos Aires em 2018 e também eu me lembro, tal como invocava Guardiola, de ver o mural com as palavras:
“Não importa o que fizeste com a tua vida Diego. Importa sobretudo o que fizeste pela nossa”.
Mourinho falava da devoção que transmitiu ao filho, que tal como o meu mais velho, já não tiveram o privilégio de ver jogar.
Se o futebol era a sua religião, as suas igrejas eram o estádio dos Argentinos Juniors (mais tarde rebatizado de Diego Armando Maradona), La Bombonera (Boca Juniors) e San Paolo em Nápoles, e ele, o seu apóstolo mais querido no meio de outros gigantes do futebol. Fico sempre com a sensação quando recordo a visita ao estádio do Boca Juniors, de que podemos já ter ido aos principais estádios do Mundo: desde o Estádio de San Siro, ou ao antigo e estrondoso Maracanã, ou até mesmo a Camp Nou e Santiago Barnabéu, ou ao imponente Estádio Monumental do rival River Plate, mas em nenhum outro encontramos o carisma e a energia da mítica La Bombonera e muito porque foi a casa de Diego Armando Maradona.
Poesia vinda do pé esquerdo
É mesmo provável que nem Pelé tenha sido melhor que Maradona. Ganhou mais que o El Pibe? Sem dúvida. Mas das 3 vezes que Pelé foi campeão do mundo, esteve sempre rodeado de monumentais jogadores. Em 1958 destacou-se sobretudo já no final do Mundial. Em 1962 o rei da ginga era afinal Garrincha que levou o Brasil irremediavelmente à vitória. Em 1970..bom, nem sei bem o que escrever. Havia, para além de Pelé, Tostão, Rivelino, Gérson ou Jairzinho. Alguns críticos especializados apontam mesmo, a par da Canarinha de 1982, como a melhor equipa de futebol de todos os tempos.
Aquilo que Maradona fez em 1986 no Campeonato do Mundo do México nunca antes havia sido visto, nem nunca mais foi visto exatamente daquela maneira. Nem com a França de Zidane ou o Brasil dos Ronaldinhos. Maradona levou literalmente a selecção Argentina às costas até ao segundo título mundial. Marcaria na meia-final frente a Inglaterra, 4 anos após o fim da guerra das Malvinas imagine-se só, dois dos golos mais comentados da história do futebol – a celebre mão de deus e aquele momento em que mostrou ao mundo que a poesia, podia também ela vir do seu pé esquerdo.
No bairro de lata de Buenos Aires
E é esse génio e essa rebeldia e que se cruzam ou cruzaram o tempo todo, que o faz o jogador mais celebrado de sempre. Ande-se por exemplo por várias cidades da América Latina para ver a diferença entre o Rei Pelé e Maradona. Muitos simpatizam com o Argentino porque veem nele uma atitude mais combativa, imprevisível e não comercial que Pelé mostrou depois de deixar os campos. Bem vistas as coisas, Maradona até poderia ter sido Campeão do Mundo em 1978, apesar da sua tenra idade aquando do torneio (apenas 17 anos) ele foi estranhamente cortado da convocatória, apesar de ter sido nesse ano o grande “artilheiro” do Campeonato Argentino pelo seu clube Argentinos Juniors.
Há sem dúvida jogadores perfeitos e outros pecadores. Messi é a apropriação da primeira no futebol. Maradona era em tudo um pecador e isso, curiosamente, humanizou-o como nenhum outro. Fora imortal em quase tudo dentro e fora do campo e por isso mesmo muito mais reconhecível para a pessoa comum. Como diria o grande cronista Nelson Rodrigues:
A paixão é mais importante do que a Bola.
Quero muito que os nossos jovens possam olhar para o outro lado que nos ensina El Pibe. Vejam por exemplo aquele velhinho vídeo de um Diego, carenciado, com 10 anos a dar uns toques numa bola num bairro de lata de Buenos Aires e a dizer a um repórter: que o seu sonho é ser um dia Campeão do Mundo pela sua Seleção. É possível que Ronaldo ou Messi na sua infância perante a mesma pergunta: qual é o teu maior sonho no futebol? tivessem respondido: ganhar uma bola de ouro! ou até mesmo jogar no clube X ou Y. Essa magia em grande parte morreu.
O sonho de menino
Quando vemos a distância que vai do miúdo de 10 anos, à sua consagração aos 26 anos como campeão do mundo e jogador mais valioso do mundial em 1986, esquecemo-nos de tudo o que podemos ensinar por exemplo aos nossos atletas em plena pandemia. Com a formação desportiva claramente condicionada em Portugal no dia em que esta crónica ganha forma (Novembro de 2020), com centenas e centenas de jovens desmotivados por ausência de calendário desportivo para competirem, porque não pensar na carreira do astro Argentino? Que chance teria um miúdo, independentemente do talento, de sair de um bairro de lata de uma cidade Sul Americana de se tornar o melhor do mundo? Esquecemo-nos, por exemplo, que muito antes da Glória Mexicana do Mundial de 1986 ou a consagração no improvável Nápoles da Série A Italiana, houve, para Maradona, o calvário das lesões em Barcelona, onde nunca foi feliz. Aliás, apesar de se ver um vislumbre do seu génio no Mundial de Espanha em 1982, alguns estarão lembrados daquele (Brasil 3 – Argentina 0) e da celebre agressão de El Pibe a um jogador da majestosa Canarinha, com a natural expulsão e consequente estigmatização.
Mas nenhuma das inúmeras circunstâncias da sua vida permitiu esvaziar-se daquele sonho do Mundial. E seguiu adiante nas variadíssimas impossibilidades, para um dia poder cumprir o sonho daquele menino que toda a vida carregou dentro dele.
Maradona era a negação da superficialidade da felicidade
Hoje em dia, um adolescente vê os malabarismos de um Messi, Ronaldo ou Neymar e é possível que para além do óbvio, queira também perseguir o ideal da ostentação do jogador de futebol do século XXI: as miúdas mais giras, carros topo de gama, todo um roupeiro de marca dos estilistas xpto. É por isso que com a morte de Maradona, morre um certo futebol. E é importante que seja lembrado, não só pelos pulos frenéticos dos seus abismos, mas principalmente a abnegação na realização do que mais profundo se deseja. É um extraordinário exemplo das imperfeições humanas, num tempo em que reina a superficialidade da felicidade fácil e do politicamente correcto… Maradona era a negação de tudo isso.
Certa vez a mais extraordinária atleta feminina portuguesa de sempre terá dito sobre os desaires dos Jogos de 2008 e 2012: “eu tive de aprender a ganhar uma medalha olímpica“. Falo obviamente de Telma Monteiro e da única coisa que lhe faltava ganhar, uma medalha nos Jogos Olímpicos. É possível, que também ele (Maradona), se tenha munido das mesmas habilidades emocionais, consciente que estava em transformar a humilhação espanhola de 1982, na gloriosa consagração do México 4 anos depois. E quantos enormes talentos e desportistas não ficam pelo caminho? Quantos não passam a ser vistos como um cemitério de desportistas esquecidos, quase saídos de um livro de Carlos Ruiz Zafón? Para se ser grande, não importa exatamente perseguir a perfeição, mas sim humaniza-la. Que apesar de um infindável mundo de variáveis que não controlamos, o sonho tem de permanecer real. Isso far-nos-á continuar… Ou como diriam alguns, numa lógica anglo-saxónica de que gosto muito: erra mil vezes, agora sim, estás preparado.
Que há na derrota um dos maiores propósitos da vida: o sentido de humildade, revestido de uma aprendizagem e ensinamento determinante, que nos fazem querer trabalhar mais e mais ainda.
E que até à glória ou momento de uma vida, temos de ajudar a reconhecer e orientar, aos nossos filhos, aos nossos alunos e aos nossos atletas, acerca das belíssimas doses desse tempo intermédio de espera, desses entretantos.
Maradona será sempre Maradona e é possível que um dia, os meus netos o celebrem o tanto quanto eu. E a razão é simples, porque ele foi o herói que se sentou sempre à mesa com todas as pessoas. Como alguém da família. Porque numa era em que os desportistas parecem mais inclinados em colocar a mão direita do lado esquerdo do peito, virados para as bandeiras das grandes marcas e multinacionais ao invés de pelo seu país – Maradona representa aqueles que têm na sua paixão pelo desporto e seu país, a única honestidade dentro deles.

Tiago Pereira da Silva
Mestre no Ensino da educação física e desporto escolar pela Faculdade de Motricidade Humana. Doutorando da Faculdade de Motricidade Humana. Professor Assistente convidado do ISCPSI Professor Assistente Convidado da Faculdade de Motricidade Humana (Judo) Treinador de alto rendimento de Judo – grau III.