OPINIÃO | Aos campeões, o desconforto

JUDO MAGAZINE | 19 de janeiro 2021 | Opinião | Crónica de Tiago Silva

Tiago Silva leva-nos, nesta sua crónica, por caminhos pouco convencionais. O que seria expectável da parte de quem lidera grupos de trabalho e de atletas, em atividades de preparação e de treino pré-competição, seria a apresentação de reivindicações de melhores condições logísticas e de mais e melhores recursos para facilitar o trabalho em desenvolvimento.

Mas não é esse o foco do autor. A sua abordagem não se restringe apenas aos aspetos materiais e exteriores ao atleta de alto rendimento e vai ao encontro de uma combinação interior/exterior que se aproxima da teoria do sofrimento nietzschiano que afirma que para se alcançar a satisfação, será necessário reconhecer no sofrimento uma etapa natural e inevitável no processo de conquista de um bem. Não queremos exagerar, estamos aqui apenas a ser confrontados com o conceito de desconforto, mas a verdade é que este desafio apaixonante do Tiago Silva sobre, precisamente, o desconforto, desconforta-nos intelectualmente, e de que maneira. CR- Judo Magazine

por Tiago Silva

Há dias, um colega meu interpelava uma atleta sua no treino de judo, (Maria – nome fictício), que se encontrava na parte final do tapete a fazer um trabalho de força – «Então Maria, já acabaste?»

Maria – «esta parte já, mas como não tive tempo de completar o treino todo,  amanhã, depois dos exames marcados e das aulas da manhã, venho cá fazer o resto». O meu colega riu-se e respondeu: «assim é que é miúda». Bem ciente do que tem de fazer na sua ainda curta carreira, mas já tão abrilhantada com resultados de prestígio no panorama nacional e internacional, a Maria parece trazer dentro de si sempre aquele conceito aristoteliano (perdoem-me o neologismo): «nós somos aquilo que fazemos repetidas vezes, repetidamente. A excelência não é um feito, mas sim um hábito». Diga-se, a bem da verdade: quantos atletas conhece o leitor que voltariam no dia seguinte só porque não tinham tido tempo para completar o treino? A Maria é daquelas pessoas em que o peso do que ganhou no passado só aumenta a responsabilidade com que encara cada novo desafio. Bob Knight dizia sempre: “a vontade de se preparar precisa ser maior do que a vontade de vencer e isso é estar disposto a qualquer sacrifício.

O que diz Obikwelo

Na realidade, e talvez sugestionado por aquilo que certa vez me confidenciou Francis Obikwelu (vice-campeão olímpico de Atenas 2004) na sala de musculação do CAR: “Tiago, hoje em dia os miúdos novos já não estão para sofrer como no meu tempo. Procuram conforto em tudo, até no treino querem ter conforto”, revejo-me muitíssimo nisto que Francis nos diz.  Tenho para mim, enquanto treinador, que não obstante do excelente ambiente que deve haver em redor de uma equipa e de um grupo de trabalho, a hora de um treino no percurso do alto rendimento tem de se parecer muito mais com o inferno do que com o céu.

Lembrei-me inadvertidamente de uma velha máxima utilizada por Bernardinho (um dos treinadores mais bem-sucedidos do voleibol mundial) “aos campeões o desconforto”. Aliás, o desconforto é para diversos autores a variável mais significativa para um apropriado mindset, ao ponto de reconhecerem que a experiência de um atleta pode muitas vezes não ser positivamente determinante no desempenho. Como nos conta Ankersen ou Kotler

“muitos atletas tendem a ter piores performances quanto mais experientes são. Eles desenvolvem ideias fixas sobre determinadas abordagens no treino e trabalham sempre em zonas de conforto. Enquanto que as grandes performances são quase sempre conquistadas pela curiosidade e a capacidade de se autodesafiarem o tempo todo.” 

Lembro-me de estar no Japão em 2018 e presenciar situações que talvez só aconteçam mesmo lá, no seio da nossa modalidade. Um dos nossos atletas mais novos percebeu a naturalidade com que os atletas a fazer randori independentemente do extremo rigor e etiqueta em cima do tapete, ou até da idade, poderão projetar para fora do tapete ou até contra uma das paredes do Dojo.

Então, mas isto é assim?

Precisamente o que aconteceu consigo. É óbvio que, no seu olhar de raiva, se vislumbravam as lágrimas de revolta como quem diz: «então, mas isto é assim?». Tinha vivido, talvez pela primeira vez num treino, aquilo que outros rapazes da sua idade fazem regularmente no país do Judo. Num contraste cultural claríssimo com a nossa abordagem “pedagógica” europeia, o jovem judoca permaneceu perturbado o resto do treino. No final da sessão reunimos o grupo, falámos com eles e o Manuel (nome fictício) permanecia “envergonhadamente choroso”, tentando disfarçar as lágrimas do resto da equipa e treinadores. Quando todos foram embora sentei-me só com ele e transmiti-lhe: “ouve, não há nada que tenhas feito no treino de que te possas envergonhar. Pelo contrário. Nem das vezes que caíste (e não estás habituado em Portugal), como sobretudo de chorar no meio do tapete. Sabes que, depois de passarmos por certos infernos, não é qualquer diabo que te queima e hoje percebeste o nível destes tipos. Precisamos de treinar muito para chegar aqui. Nunca ficaste no chão a queixares-te e a virar as costas à luta e isso diz muito do teu caráter e daquilo que ainda vais fazer no judo. Lembra-te uma vez mais:

depois de passares por certos infernos, não é qualquer diabo que te queima.”   

Quando Rasmus Ankersen chegou a Kingston para tentar compreender o segredo do viveiro de talentos de uma geração de velocistas Jamaicanos, estava longe de imaginar aquilo que de facto viria a encontrar. Aliás, ao contrário do que o comum dos mortais poderia pensar quando se começa a falar dos grandes centros de treino mundiais, as pessoas pensam logo em comodidade, condições de excelência, onde nada falta para otimizar esses talentos”, o que Rasmus pôde observar foi uma simplicidade “chocante” de pilhas de pinos, muita relva e uma pista de 400 metros com um tartan decrépito, entre outras velharias e materiais rudimentares. Mas foi também ali que, no meio de uma pista pouco iluminada, a treinar na relva, encontrou cerca de 40 atletas, alguns dos quais campeões olímpicos e detentores dos recordes mundiais de velocidade. Não nos distraiamos, contudo, com aquilo que creio ser essencial na análise de Rasmus.

Rasmus Ankersen

Procurar o desconforto

 Quando o dinamarquês perguntava ao fundador do clube (Stephen Francis), se com a chegada do prestígio internacional de alguns destes atletas, o apelo de patrocinadores, entre outras coisas, se teria a intenção de mudar as instalações, a resposta foi absolutamente contundente: o ambiente de treino que possibilita uma performance excecional não deve ser baseado em conforto, mas sim em trabalho árduo. Temos sempre esta tendência para achar que por detrás de grandes resultados está uma sofisticação e um investimento brutal nas condições do treino. Lá regressamos nós ao que parece ser transversal em tantos ambientes que geram campeões – o desconforto.

Há pouco ouvia a passagem “de que ninguém faz a coisa certa por que resulta sempre. Nós fazemos a coisa certa, porque é aquilo que temos de fazer e ponto final” e no treino é muito assim. Só que a tal “coisa certa” é nos permitirmos fazê-la. Desafiarmo-nos constantemente. «Devemos procurar esse desconforto em particular, aquele que passa por levar a nossa mente ao limite. Se não criarmos desconforto a partir de dentro, garantidamente teremos de o vivenciar a partir de fora. E será muitíssimo pior».

E é tão fácil antecipar que, criando determinados ambientes para os nossos atletas no treino, estaremos mais capazes de os preparar para qualquer cenário imprevisível que venham a vivenciar em competição ou fora dela. Porque a arte do treino também prepara para a vida. Veja-se a quantidade de ex-atletas de alto rendimento em cargos de prestígio internacional.

Rafaela e os diabos

Muitas vezes esses ambientes “infernais” nem sequer foram vividos só no treino. Dizem respeito sim, aos ambientes sociais e contextuais do crescimento de cada atleta. Veja-se a quantidade de futebolistas brilhantes saídos de contextos sociais muito adversos e desconfortáveis. Até os nossos Eusébio e Ronaldo. Ou quando nos lembramos, por exemplo, da Campeã Olímpica de Judo Brasileira – Rafaela Silva que, como sabemos, cresceu no interior de uma favela no Rio de Janeiro, mergulhada no seio dos maiores preconceitos que há na estrutura social do Brasil (cor da pele, pobreza e orientação sexual). Talvez o mais fácil que lhe pediram para fazer na adolescência tenha sido mesmo o ir para dentro de um tapete ganhar combates. Com uma história de “sobrevivência” a todas estas circunstâncias, uma Rafaela Silva calejada a todas estas adversidades, nunca permitiu que alguns “diabos a queimassem”

É comum também muitos jovens atletas acharem que as super-estrelas das modalidades, nunca ficam nervosos ou que são de alguma forma “Extra terrestres”- Mas nem sabem o comum que eles são nesse aspecto. Têm emoções como nós. O que os distingue, contudo, prende-se na maior parte das vezes com a componente que dão ao treino mental e uma crença arrebatadora nas suas capacidades. O prof. Mário Moniz Pereira dizia sempre que perante um mesmo evento na corrida, por exemplo um dia chuvoso, o Fernando Mamede chegava ao pé dele e dizia: – “prof…não gosto nada de correr à chuva”. Uns minutos depois chegava o Carlos Lopes e dizia: – “Prof…isto hoje está mesmo bom, os meus adversários não gostam nada de correr à chuva”. Claro que esta história de certa forma engraçada é demasiado simples para determinadas explicações. Mas há uma coisa que parecemos logo estar seguros, que perante a mesma circunstância adversa, um atribui-lhe uma carga afectiva negativa e o outro sai reforçado da situação.

Mamede e Lopes

Para os da minha geração, não haverá muita dúvida de que a maior “maior máquina de atletismo” trabalhada pelo Prof. Mário Moniz Pereira foi Fernando Mamede. Que quando as provas não eram tão importantes foi capaz de estabelecer os recordes do mundo durante mais de 10 anos. Mas não houve outro como Carlos Lopes – O primeiro campeão Olímpico português e a força mental de Carlos Lopes fez dele muito daquilo que ele foi.

Alguém que queira quebrar uma barreira, um record, algo inédito, ou simplesmente vencer uma competição, se ele não se visualizar a fazê-lo, se não tiver uma imagem clara na sua cabeça disso acontecer, não vai acontecer. Mas isto trabalha-se todos os dias no treino, independentemente do tipo de trabalho. Esse mindset tem de ser criado com as doses certas individuais para cada um, não é uma receita que se possa copiar. É parte de uma construção mental diária e individual do atleta.

Kayla Harrison

Não por acaso, a a bi-campeã olímpica Norte-Americana de Judo Kayla Harrison afirmou perentoriamente: “eu não falto a uma sessão de Judo, nem de musculação ou outro tipo de trabalho. Também não “falto” às minhas horas de preparação mental. Eu tenho que criar uma imagem clara na minha cabeça do dia da competição e comigo a sair vencedora. Visualizo tudo, pavilhão, adversários, ambiente, etc”. Essa imagem é tão forte e tão antecipadora, que de certa forma preparamos o corpo e a mente para quase tudo o que possamos viver no dia D. Isso dar-lhe-á um controlo muito maior da ansiedade, estratégias emocionais para alimentar o pensamento positivo e controlar toda e qualquer informação negativa. Se eu não treinar isso diariamente, não é no dia da competição que eu me auto-regulo para a performance ideal.

Carl Lewis

Outro relato curioso é o de Carl Lewis (um dos atletas do século XX), que nas finais olímpicas dos 100 metros ou salto em comprimento, tinha um momento preparatório em que fechava os olhos e imaginava-se sempre num treino, ou numa prova sem o peso de uns JO “dessa forma, sentia um nível de activação suficientemente forte para não comprometer a performance, mas mais baixo do que aquele que já resvala para um excesso de tensão, que comprometia até a minha respostas musculares”. Era como que um: “faz a coisa mais importante da tua vida como se não tivesse importância nenhuma”.

Greg Louganis

Greg Louganis, provavelmente o maior saltador (saltos para água/ornamentais) da história do desporto Olímpico, com 4 medalhas de ouro em JO e uma de prata, reconhece o insubstituível trabalho de um mindset ideal “por vezes, quando chegava à plataforma, sentia tanta tensão no meu corpo, que a forma que eu tinha de relaxar, era fechar os olhos, concentrar-me muito e lembrar-me do que a minha Mãe dizia, que independentemente do resultado final eu seria sempre o seu filho querido. Isso retirava-me tanta pressão, que esboçava sempre um sorriso lá em cima. Depois era só fazer aquilo que eu sabia fazer. Quando virem essa imagem vão saber, que estou a pensar na minha mãe.”

Tiago Pereira da Silva
Mestre no Ensino da educação física e desporto escolar pela Faculdade de Motricidade Humana. Doutorando da Faculdade de Motricidade Humana. Professor Assistente convidado do ISCPSI Professor Assistente Convidado da Faculdade de Motricidade Humana (Judo) Treinador de alto rendimento de Judo – grau III.

Fotos © wikipédia

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