08/12/2024

FORMAÇÃO | Formações para quê e como?

JUDO MAGAZINE | 19 de março 2021 | FORMAÇÃO | JUDOLab

Afirmar que a principal missão do desporto é educativa, como o faz Virgílio Silva nesta sua análise, profunda e oportuna, é logo à partida separar trigo do joio. É optar entre desenvolvimento e faz-de-conta. E na formação, mais do que valorizar o curso ou a ação formativa, o autor enaltece o percurso como processo determinante no desenvolvimento das competências. Um posicionamento claro que vale a pena saborear em todos os ingredientes de uma tese desafiadora face aos hábitos instalados. Editado CR | JM

Formações para quê e como? Uma brevíssima análise subjectiva ao caso do Judo em Portugal

por Virgílio Silva

O desporto emanará o tipo de atributos que as pessoas, os intervenientes lhe atribuírem.

Formar o desportista é um processo em longo-prazo. Nessa medida, o professor que ensina Judo, e que para tal também tem de sujeitar-se a formação, é comparável ao progenitor que educa a criança. Já que também a formação de desportistas é uma tarefa de persistência e de paciência. Sendo que colhemos em concordância com aquilo que semeamos, através não só do que transmitimos oralmente como também por meio do que demonstramos, sob um ponto de vista bastante mais além do que o meramente tecnicista. Em sentido mais abrangente e até de aforismo, considera-se que o exemplo não é a melhor forma para educar; é a única! Na perspectiva tecnicista desse desiderato, ao professor importa possuir o gosto de formar-se para formar e nutrir um genuíno interesse pela progressão, também desportiva, do aluno. Doutro modo, qualquer intervenção formativa e educativa será limitá-lo e desrespeitá-lo.

O facto indesmentível é que ninguém pode ensinar aquilo que não sabe.

Entre todos os desportistas ou praticantes, muitos poderão experienciar a competição, mas apenas uma minoria dos desportistas se transforma em competidores de alto rendimento e desses, ainda menor número atinge o sucesso máximo. Campioníssima como a Telma Monteiro, temos uma. Jorge Fonseca campeão do mundo, há um. Por conseguinte, para quem está no desporto e nele intervém a missão fundamental é educativa. Trata-se de preparar os futuros adultos para a vida em sociedade. E acontece que para isso faz-se uso do ensino do desporto. Mas para que o desporto corporize uma autêntica escola de vida, não basta soltar ao desporto desregradamente crianças e jovens. Os intervenientes no acto educativo e formativo têm que ser impermeáveis às fragilidades mais vis da condição humana. Senão a vivência desportiva será mero reflexo das perversidades e subversões que nos menorizam e atrasam enquanto sociedades.

Desporto e mundo melhor

O desporto deve servir os seus praticantes, através das experiências de socialização e das aprendizagens tecnicistas que lhe são próprias, para a construção, no limite, de um mundo melhor. Tentando educar, entre outros, para a prática desportiva ao longo da vida, para a ética no trabalho, para o esforço resistente, para a auto-melhoria através do erro e do fracasso, para o respeito e a admiração aos outros dos quais de uma maneira ou de outra dependemos, para a competição enquanto meio de progressão também humana e não apenas tecnicista, de modo a sermos, em última análise, a melhor versão de nós próprios. O que, de acordo também com o grau de preparação dos intervenientes no processo, pode ou não vir a proporcionar-se. Já que o desporto, no abstracto, não é pleno de virtudes nem de valores eticamente fundados. O desporto emanará o tipo de atributos que as pessoas, os intervenientes lhe atribuírem.

Em sentido mais restrito, insuficiências nos diversos tipos de conhecimentos sobre a modalidade, por parte dos professores que actuam na formação de desportistas, têm que ser, o mais possível, combatidas. Porquanto não é admissível que desportistas que atingem as selecções nacionais não dominem fundamentos táctico-técnicos dos mais básicos – esta realidade foi retratada, há poucos anos, por um ex-Treinador nacional. Confidenciava este que não poucos dos jovens judocas que se lhe apresentavam não sabiam indicar a que lado lutavam e tampouco tinham conhecimento de esquemas táctico-técnicos básicos de disputa de kumi-kata.

Ninguém pode ensinar aquilo que não sabe

Já um ex-Olímpico nacional asseverou convictamente que se tivesse sido melhor ensinado no momento certo, teria sido campeão Olímpico e não só (passe o eufemismo) medalhado a nível europeu e internacional. Histórias do género destas não nos faltarão, suponho. Até a minha humilde história, numa outra escala, posso aqui incluir. Mas já a relatei sucintamente no Judo Magazine, neste outro ensaio, com o título “Individualização e especificidade na práxis do Judo”.

O facto indesmentível é que ninguém pode ensinar aquilo que não sabe. Este parece-me ser um problema importante no desenvolvimento do Judo em Portugal (embora seja mais evidente numas regiões do que em outras) que reclama, sem dúvida, por uma resposta de esforços múltiplos amplamente concertados…

… precisaríamos, em certo sentido semelhante ao que tivemos no passado, de um Mestre Kiyoshi Kobayashi ou vários em itinerância, pelo menos, por cada distrito do país…

Centralmente, os referenciais de formação inscritos no papel podem ser os melhores. Mas a qualidade da formação não se estabelece por decreto. Quem faz as Organizações e a qualidade da formação são as pessoas. E na sua natureza, por vezes, as pessoas também são falíveis. A mais imponderável das variáveis é justamente a variável humana. Precisamos de uma cultura de exigência não só e também na formação dos agentes desportivos. Por si só, nenhum curso ou formação é bom ou mau; este é melhor ou pior, de acordo com a exigência das pessoas que formam. E da exigência, desde logo, dos formadores consigo próprios. A cultura do facilitismo, que redunda em mediocridade, nunca há-de colher os melhores frutos. Mas tristemente acredito que não é totalmente rejeitada e, a espaços, lá vai sendo alimentada, seja por desleixo seja por ignorância, falta de conhecimentos.

Parece-me necessária, à escala de todo o território nacional, uma Escola Portuguesa para o ensino do Judo (sem prejuízo de cambiantes locais ou regionais). Se por analogia pensarmos no legado deixado ao Atletismo pelo saudoso Professor Moniz Pereira, este conseguiu-o informalmente, disseminando o que mais tarde percebeu-se ser a Escola Portuguesa de meio-fundo e fundo. Ora também no Judo a missão tem que ser servir a modalidade por meio do trabalho dedicado dos mais bem preparados em cada área de intervenção. Nem todos poderemos ser supra-sumos, mas todos deveríamos ser ensinados pelos melhores de Portugal. O que, dado a limitação de recursos, implicaria um processo organizacional centralizado e, ao mesmo tempo, de efectiva intervenção e acompanhamento locais, no quotidiano do terreno.

Disseminar os conhecimentos

Nessa senda de disseminação de conhecimentos e sabedoria e de formação de professores e treinadores precisaríamos, em certo sentido semelhante ao que tivemos no passado, de um Mestre Kiyoshi Kobayashi ou vários em itinerância, pelo menos, por cada distrito do país – quer dizer, com a excepção possível de um ou outro distrito. Vários ilustres judocas Portugueses bem que poderiam ocupar e desempenhar esse importante papel de maximização da modalidade, por via da desconcentração…

Expandindo a linha de raciocínio, por exemplo, a qualidade dos conteúdos ministrados no curso da entidade A não pode divergir drasticamente da evidenciada no curso da entidade B. O professor do clube na região X não pode, por princípio, ser abissalmente mais conhecedor e competente do que o do clube na região Y, se ambos actuam no mesmo nível de ensino. Já a montante do processo, sou da opinião que o modelo do Associativismo Desportivo tem que se reinventar e tender para alguma profissionalização convenientemente remunerada, face à prestação de trabalho qualificado e diferenciado de diversa ordem. As décadas dos carolas têm que ser tão-só boas memórias do século passado. No tempo presente, precisamos também de profissionais devidamente preparados à luz dos conhecimentos mais actuais, não só para ensinar e treinar assim como para organizar e gerir, atravessando, como tal, todos os agentes desportivos que intervêm no fenómeno desportivo. Fazendo um aparte, para que se perceba o quão vasto se pode tornar um debate sobre formação no desporto, quer de desportistas quer de professores/treinadores, só este último ponto – isto é, a mudança e/ou melhoria ao sistema/modelo Português de organização e desenvolvimento desportivo – dava objecto para uma tese. Mas por ora centremo-nos na dimensão formação apenas e, em particular, no concernente aos agentes (professores e treinadores incluídos) que formam desportistas.

O aspecto diferenciador tem que ser o esforço e o compromisso

Como facilmente depreendemos, também a formação do professor ou treinador é um percurso. A competência profissional não se compra. Desenvolve-se apenas e só no confronto com as exigências das situações ou problemas experienciados na práxis. Mas em dependência, por demais evidente, da informação e sabedoria acessíveis em dado tempo e lugar. Não se deve ocupar 10 anos com algo que é possível acomodar ao fim de muito menos anos. O princípio absoluto que subjaz a esta afirmação constitui um aspecto fulcral do propósito de todo e qualquer acto formativo enquanto processo intencional e exercício de competência.

Na senda do sucesso, o aspecto diferenciador tem que ser o esforço e o compromisso de cada qual e não exageradamente o privilégio ou a sorte ou o acaso do processo formativo. Nesta era tecnológica, a qualidade da formação e, por consequência, do ensino e do treino não pode estar dependente do acesso à informação nem de assimetrias muito significativas no desenvolvimento desportivo entre regiões. O próximo medalhado Olímpico Português, por princípio, não tem obrigatoriamente que emergir da riqueza do contexto desportivo substancialmente mais vantajoso que se viva em torno de uma qualquer região, comparativamente a várias outras regiões do país. Em aproximação de circunstâncias e de oportunidades tendencialmente mais equitativas, deveria ser possível formar um futuro medalhado Olímpico também, por exemplo, a partir de Valença ou de Portimão e preferencialmente, diria eu, sem desterrar jovens, separando-os da família nuclear…

Quem teria sido Jorge, o judoca, se se tivesse instalado não próximo do Treinador Pedro Soares, mas sim, por exemplo, em Évora ou Bragança?

Nortear a prática, nos escalões inferiores aos de seniores e de juniores, para resultados imediatos ou em curto-prazo, em prejuízo da formação global e em longo-prazo do desportista, é prestar um mau serviço às nossas crianças e jovens. Voltamos, pois, ao ponto de partida: Só uma minoria dos praticantes atinge o alto rendimento desportivo (e para esses existe, não raras vezes, uma factura pesada a pagar na saúde). Assim sendo, excluindo objectivos de comportamento e atitudes, se por exemplo o petiz judoca não sabe como se defender ou esquivar a um ataque nem muito menos sabe como preveni-lo, mas deveria sabê-lo, então tem que aprender a fazê-lo.

Isso, a progressiva formação desportiva de base tão completa e diversa quanto possível, tem que ser mais importante do que a medalha ou o resultado na próxima prova ou competição. Por conseguinte, através do desporto praticado nos escalões de base acima referidos, importa desenvolver a cultura do trabalho acima da cultura de sobrevalorização do aparato do resultado face à substância do processo. Aliás, essa visão da competição, enquanto meio não só formativo como além disso educativo, foi justamente a que o fundador Mestre Jigoro Kano concebeu para o Judo. Pois todo o resultado depende de um processo de trabalho. Sendo bom o processo, será bom o resultado. Devendo este ser entendido e avaliado globalmente e sistemicamente e não com o viés redutor e, por vezes, até popularucho das medalhas pelas medalhas, enquanto fim único e último da existência humana no desporto.

Formação desportiva de base

Doutro modo, no panorama competitivo internacional, continuaremos enquanto país a colher frutos não da força colectiva da nação em toda a sua extensão e valor potencial, mas sim predominantemente de fenómenos locais pautados por maior acumulação de riqueza desportiva, do acaso e do tropeção no talento descomunal e, mais recentemente, de naturalizações de ocasião promovidas a atletas, no fundamental, já desportivamente formados em países estrangeiros. Nisto, não me refiro àqueles que, passe a expressão, nasceram para o Judo em Portugal e que, mais ou menos a partir do zero, por cá se transformaram em excelsos competidores. A esse respeito e a título de exemplo por excelência, nada mais nada menos do que o nosso muito e especial obrigado a quem – além do próprio – mais directamente participou e contribuiu, em particular o Treinador Português Pedro Soares ex-Olímpico, para a formação do Jorge Fonseca. Jorge, o campeão do mundo em 2019 e Comendador da Ordem do Mérito, oriundo de São Tomé e Príncipe e que enquanto imigrante, instalado na Damaia (freguesia da Amadora), daqui brotou paulatinamente até ao topo do mundo competitivo, para orgulho de uma nação! Todavia, diante disto a pergunta que se impõe é só uma: Quem teria sido Jorge, o judoca, se se tivesse instalado não próximo do Treinador Pedro Soares, mas sim, por exemplo, em Évora ou Bragança? Mais, quantos Jorges ou Telmas perderemos, por cada um(a) que detectamos efectivamente? O foco central das representações nacionais deverá incidir sobre os que crescem e se desenvolvem num sistema desportivo Português congregador e justo – ainda que casos muito pontuais de naturalizações de ocasião, a atletas excepcionais, sejam compreensíveis, por poderem em longo-prazo, se fixados em definitivo no país esses atletas, vir a beneficiar as futuras gerações de desportistas a formar em Portugal.

Em jeito de analogia, se perguntarmos quem além da própria Rosa Mota, há décadas, determinou que esta se transformasse na campeã Olímpica, a resposta não é complexa. Tratou-se de uma formação atlética, curiosamente, após a saída de um grande clube nacional e, acima de tudo, na ausência de grandes recursos de treino que não apenas, além do compromisso da própria, os esforços técnicos e logísticos de duas pessoas, um Professor de Educação Física e um outro ex-atleta de corrida, com formação em Medicina.

No Judo, os praticantes também dependem uns dos outros para se formarem

Em contraste, já no Judo e aos dias de hoje torna-se bastante mais difícil “correr” (leia-se, treinar a luta) sozinhos ou isolados, se considerarmos a natureza aberta, imprevisível e decisional da luta de Judo. A força do indivíduo está, e muito, na força do seu grupo de prática ou treino. No Judo, os praticantes também dependem uns dos outros para se formarem – e não é pouco. Se não aprendermos a lutar uns com os outros, não contra os outros, ficaremos tendencialmente mais isolados a nível interno, com medalhas de relevo internacional pontualmente apesar de tudo, mas lamentavelmente circunscritos a um processo pobre e insuficiente para que cada praticante – onde quer que se forme do território Português e independentemente do nível de realização competitiva a que almeje – possa receber a justa formação para ser a melhor versão de si próprio.

Do Autor: Virgílio Silva é praticante de Judo desde 1990, 4.º Dan, exerce como professor/treinador desde 2013 e foi competidor entre 1999-2013. Licenciado pré-Bolonha, mestre e doutor pela Universidade do Porto, Faculdade de Desporto. – E-mail: virgiliomssilva@gmail.com

Foto destaque © NMLiveOnstage.

SOBRE O AUTOR | Editor

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