O treino mental é tão importante como a sessão de judo ou com o trabalho de força ou de pista
JUDOLAB | INVESTIGAÇÃO
Tiago Silva promove, mais uma vez, o debate e a reflexão sobre aspetos fundamentais da função do treinador que lida com atletas de alto rendimento e, em particular, sobre a importância do treino mental assumido na sua dimensão transversal que o coloca como determinante para o sucesso na preparação dos atletas.
Crónica | por Tiago Silva
A oportunidade ganha pela mente
Há quase 30 anos uma equipa de Futebol (Dinamarca) pareceu desafiar a lógica comum de qualquer tipo de Periodização no Futebol, viu os seus jogadores já de Férias serem resgatados à última da hora para o Campeonato da Europa de Futebol de 1992 na Suécia e o resto é uma história com contornos quase épicos. “A seleção dinamarquesa nem devia ter participado no Europeu de futebol de 1992, mas a Jugoslávia, em guerra, foi vetada e, como que por magia, uma eliminação transformou-se em título.” Numa geração onde se encontravam alguns dos grandes nomes do futebol Dinamarquês de sempre, tais como o ex-leão Peter Schmeichel, Brian Laudrup ou Flemming Povlsen, havia também o realismo de que, apesar de tudo, haveria poucas chances de vitória em território Sueco.
De facto (eles) estiveram até ao último jogo da fase de grupos para ir para casa, tendo no derradeiro (terceiro) jogo de vencer a França (ainda de Platini) e esperar pelo resultado de um Suécia vs Inglaterra, favorável aos Suecos, uma vez que a equipa de Schmeichel e Laudrup tinham apenas um empate ao final de dois jogos.
Este caso sempre foi interessante para qualquer apaixonado pela Psicologia do Desporto e da Performance. Basta pensarmos na imagem popular e que se tornou quase um “mito urbano” dos Jogadores da Dinamarca, como p. e. Brian Laudrup dentro de uma piscina com uma belíssima cerveja alemã na mão, a receber um telefonema de um Director da Federação Dinamarquesa de Futebol a explicar que as férias estavam terminadas. Na realidade, os índices físicos seriam seriamente questionáveis, porque facilmente imaginamos já alguns jogadores no seu normal período de “excessos”.
Mas então que factores poderão explicar o desempenho colectivo da equipa da Dinamarca, que acabou por vencer a Campeã da Europa em título na meia-final (Holanda) nos penaltis e a poderosíssima Alemanha, por 2 – 0 na final?
Talvez o facto de (eles) terem estado de férias, tenha mesmo jogado a seu favor. É possível que os jogadores e a própria equipa técnica tenham intimamente pensado: “Ninguém espera nada de nós! Estávamos de férias e agora estamos aqui a realizar um sonho que tinha sido desfeito com a não classificação. Vamos aproveitar e desfrutar ao máximo daquilo que mais gostamos de fazer, sem pressão, só futebol”.
E não é que resultou?
Correndo o risco de simplificar em demasia, talvez seja qualquer coisa como aquele fundamento da Psicologia da Performance: «Joga como a coisa mais importante da tua vida, como se não tivesse importância nenhuma». Ao fim ao cabo muitos autores parecem acreditar, o que na prática vemos que influencia a performance do atleta no momento chave da época – de que se for retirado o elemento pressão e expectativa sobre o que vamos realizar, o corpo e a mente estarão muito mais próximas de actuar na sua plenitude, sem permitir que factores externos e internos possam perturbar a performance ou realização da tarefa.
Há um ano atrás escrevia, exatamente para esta revista, uma crónica sobre «Placebo do Desempenho» e a importância no alto rendimento de ter uma crença quase irracional para a vitória. Ao fim ao cabo, este é o território em que os treinadores mais gostam de trabalhar. Digo tantas vezes no treino, que um exercício por ser mais tático ou técnico, não tem de ser menos metabólico ou psicológico. E o desafio vem exatamente daí, de criar constrangimentos mentais ao atleta, para poder progredir. Enraizar o pensamento de que se deve ter a inteligência de um general nas decisões e a humildade de um soldado no treino. Desafio emocional esse, que no treino pode muitas vezes passar por lidar com os fantasmas que tem com um determinado oponente ou como pela própria predisposição mental para determinadas exigências físicas no treino. Pessoalmente, já tive atletas que afirmaram veemente não querer treinar com certos parceiros. Como se isso pudesse ser possível!
A responsabilidade do atleta e do treinador
Estou em crer que dos maiores prazeres que advém de se ser treinador, tem que ver com toda a complexa preparação realizada e que é multi-factorial, para no final, no dia da competição, o atleta estar pronto a “voar”. Isso, quer queiramos quer não, é mérito ou demérito de um treinador. Se o atleta cometer um erro tático no meio de um combate, poderá ser em grande parte (ou não) responsabilidade sua.
Mas se o atleta chegou à competição, mal preparado física, técnica, tática e psicologicamente a responsabilidade maior e quase exclusiva, à partida, é do treinador.
Bem sei que o que saliento não é popular, mas é mais do que uma impressão subjectiva ou apreciação empírica.
Imagem IJF Feliciantonio Emanuele
Por outro ladp, o maior obstáculo que pode haver na progressão do atleta é muitas vezes o próprio atleta, no entanto uma ideia parece ser clara para mim e que defendo muitas vezes no treino: “eu não posso controlar os shidos que vocês vão apanhar no dia da prova. Mas se vocês ao final de dois minutos de Golden Score não têm bomba, a responsabilidade é minha. Por isso mesmo, temos sempre de fazer o que tem de ser feito. Se com o vosso compromisso não faltarem a nenhum tipo de treino, da nossa parte garantimos que ninguém vais estar fisicamente melhor do que vocês.” E os atletas ao ouvirem isto, criam desde logo uma vantagem mental, porque confiam na mensagem do treinador. Acreditam que as coisas serão feitas com critério. Mas repito, o maior obstáculo pode ser ele próprio, se não tiver a humildade de trabalhar na justa medida da sua ambição.
O “Sucesso começa, onde acaba a zona de conforto”.
Coates o mau da fita
Olhando novamente para o exemplo do Futebol, veja-se a época que fez Sebastián Coates no Sporting, Campeão Nacional de Futebol 2020/21. Ao nível, ou até melhor, do que havia feito nos seus primeiros seis meses de Sporting, que com Jesus, quase foi Campeão. Quase foi, mas não foi. Eu lembro-me de estar há dois anos em Alvalade com o meu filho de 10 anos e ele perguntar-me:
«Pai, porque é que toda a gente assobia o Coates?»
Coates Ruben Amorim
Imagens © O leonino
Na realidade de cada vez que ele recebia a bola, parecia que a bola “queimava” nos seus pés, era o jogador mentalmente mais “destruído” do universo do futebol português. Era penoso ver um jogador de tamanha categoria assim!
Mas o que terá mudado em Coates de há dois anos a esta parte?
Terá aprendido a jogar de outra forma?
Dir-me-ão os experts do futebol: «aprendeu e integrou automatismos no sistema de jogo do Rúben Amorim».
Isso, pelo menos para mim, não explica a transformação maior. Chegámos por isso ao território que normalmente mais me atrai como adepto do desporto, mas sobretudo como profissional da área, a grande “revolução” que Rúben Amorim terá operado no plantel do Sporting, sobretudo em jogadores como Coates… foi mental! Nomeadamente explicar a importância quase «Divina» que esses mesmos jogadores tinham no seio da equipa. Transmitiu a Coates uma confiança total nas suas capacidades como jogador, protegeu-o sempre e sobretudo nos maus momentos e deu-lhe a garantia quase sagrada de que ninguém, que pudesse ir “buscar” fora do plantel, desempenharia melhor o seu papel de central e capitão do Sporting. Imaginem o efeito que isto produz no ego do jogador?
– Na verdade, Coates passou de um central banal e quase dispensável do Sporting, para um jogador de que daqui por 20 anos, continuará a ser lembrado por todos os sportinguistas. Não quer isto dizer, que no seio da melhoria do jogo de Coates, na interpretação do modelo de jogo de Ruben Amorim, não tenha estado também presente a preparação mental. É exatamente isso que defendo aqui.
Que a aquisição técnico-táctica não pode ser despida e separada do treino mental.
Potenciar talentos
Potenciar talentos, potenciar performances é ou deveria ser sempre o desígnio do Treinador. Conhecer a psicologia de cada atleta e perceber os “gatilhos emocionais” a serem acionados para “retirar” o melhor desempenho deles. Como escrevia há rigorosamente 1 ano atrás, citando Matthew Syed: “o progresso alcança-se, ignorando a dúvida”. Temos de capacitar os atletas de uma mentalidade em que o foco está neles e na sua performance, ao ponto de eles acreditarem tanto ou mais do que nós na premissa: ter uma crença “irracional” na vitória independentemente do adversário ou obstáculo. Mas uma vez mais sublinhamos, tudo isto tem de ser “construído” diariamente no treino. Não é nada que se possa invocar ou “disponibilizar” mentalmente como recurso só nos dias da competição.
O treino mental é tão importante, como a sessão de judo, como o trabalho de força ou o trabalho de pista. A grande diferença é que ele é transversal a todas as tarefas.
Eu poderia ir buscar à música e ao desporto (só para citar duas dimensões) centenas de exemplos, de que por de trás de algo divino e glorioso esteve um quase não, um quase falhanço, um gigantesco constrangimento, uma quase dúvida que se tornou certeza. Comecei pela Dinamarca, que esteve fora do Europeu e que acabou por ganhar. Michael Jordan foi um pré-universitário quase excluído das equipas de Basquetebol, por alguns treinadores o considerarem sem a robustez suficiente para a fisicalidade do basquetebol profissional.
Keith Jarret é amplamente considerado pela critica como o Pianista de Jazz mais influente dos últimos 25 anos. O que muitos não sabem é da contrariedade que Keith sofria a tocar por causa de um bloqueio/lesão numa das mãos.
Keith Jarrett
Jimmy Pedro, do Judo, um dos melhores treinadores da actualidade e dos melhores judocas de sempre, costuma dizer que: “Every Champion wants to quit”. Ele próprio chegou a ouvir de um médico a frase:
– “Desculpa Jimmy, mas nunca mais poderás fazer Judo outra vez”. Tal era a seriedade da lesão na coluna (hérnia discal). Na realidade, não só voltou como foi medalhado olímpico e campeão do mundo. Ele remata com um convincente testemunho: “Quando pensamos em grandes campeões só nos lembramos de vê-los no pódio ou nas grandes performances. Nunca ninguém se lembra das centenas de horas más que tiveram, dos dias negros em que quase desistiram”.
Outro judoca, que como Jimmy foi duplo medalhado Olímpico, relatava há pouco tempo o seu calvário de lesões, foi justamente o brasileiro Leandro Guilheiro. A páginas tantas ele dizia a interessantíssima frase:
– “De que quando me imaginava como medalhado olímpico, sempre o imaginei no esplendor da minha forma e capacidades. Nunca imaginei que pudesse vir tão de “dentro de mim”, por estar diminuído fisicamente. E foi precisamente o que vivi”.
A lesão de Koga
Tivemos neste ano que passou o desaparecimento do mais celebrado de todos os judocas em todos os tempos, um quase “Deus” para inúmeros judocas espalhados pelo mundo, justamente Toshihiko Koga. O homem que por uma lesão grave no braço, teve de transformar a forma de fazer o seu tokui-waza (técnica favorita) retirando pressão sobre o cotovelo.
Há dezenas e dezenas e dezenas de discos marcantes e aclamados da chamada música anglo-saxónica em que os seus músicos ou as bandas passavam por uma suposta separação iminente ou um calvário pessoal. E no entanto, contra todas as expectativas das mesmas, do grande público e da indústria – tornaram-se referências incontornáveis.
Replico, qualquer um de nós poderia estar aqui o dia todo a citar exemplos atrás de exemplos… E não querendo simplificar uma questão, que se poderá explicar de uma forma bem mais complexa, provavelmente a circunstância “falou-lhes ao coração” desencadeando o mecanismo emocional e físico que potenciou excecionalmente o desempenho. Infelizmente, a premissa clássica, muito socrática, de que devemos usar a “nossa mente racional para dominar as emoções, transmitiu-se ao longo de séculos e continua a definir muita da nossa cultura actual”. Temos uma tendência quase generalizada a aplaudir socialmente pessoas que reduzem e reprimem as emoções à submissão. É por isso que muitas vezes acreditamos que o modelo de atleta a perseguir é aquele que parece ser implacável e robótico com as suas emoções. Se esta premissa clássica fosse verdadeira, tal como “brincam” Mark Manson ou o Neurocirurgião Português António Damásio, andaríamos todos a fazer lobotomias.
“Afinal as nossas emoções são instrumentais para a nossa tomada de decisão e nossas acções, só que nem sempre percebemos isso.”
Os dois autores parecem convergir numa coisa: “o mundo gira em torno de uma coisa: sentimentos”. Portanto não se peça a um atleta para “desligar” a carga afectiva da tomada de decisão. Esse será quase sempre o seu combustível, aquele que alinha as suas decisões.
Talvez a nossa reflexão colectiva vá desmistificando a dúvida sobre o princípio de que andamos todos à procura da resposta: «Pessoas excepcionais perante as circunstâncias excepcionais, revelam-se? Ou pessoas normais perante circunstâncias excepcionais, produzem desempenhos excepcionais?».