GRANDE REPORTAGEM – Os mensageiros do judo inclusivo

Publicado 8 de setembro 2022 | Reportagem por Carlos Ribeiro no Clube de Judo Total

As medalhas de Miguel e Djibrilo são um virar de página no judo paralímpico

Total. No sentido de pleno, de integrado e de agregador. Total. Um espaço, um projeto, uma comunidade, com total no nome e na forma de agir. Clube de Judo Total. Uma referência viva de estratégias inclusivas que enriquecem o judo como modalidade desportiva que contribui para o desenvolvimento social.

Viemos à procura do Miguel e do Djibrilo. As medalhas no Campeonato da Europa IBSA de Cagliari mexeram connosco. Prata e bronze, não era pouco. Tornara-se urgente vir à conversa, procurar perceber melhor as emoções, a alegria, as sensações únicas que vitórias, com aquela dimensão e importância, fazem vir ao de cima.

O Miguel chegou, com o Cocas, uma doçura de cão-guia que temos vontade de abraçar, acompanhado pela sua companheira sorridente e pelos filhos. Anunciou sem qualquer perturbação na sua enorme tranquilidade “Na mudança da mochila, para vir para o treino, esqueci-me da medalha”. E estava anunciada a forma como iria decorrer o encontro com os treinadores e os atletas deste clube que dá muita importância às medalhas, mas que dá uma importância bem maior às pessoas e ao fato delas estarem juntas, de conviverem e de se encontrarem para praticar desporto.

No dojo do Pavilhão 3 do CDUL

O Djibrilo relembrou rapidamente o processo que decorre entre a viagem de avião, a chegada ao país no qual tem lugar a prova, a ansiedade crescente até ao último segundo e depois os combates, “a concentração no esforço para vencer, para ultrapassar o que não está a correr bem “

O treino arrancou não sem que antes o experiente treinador Fernando Seabra e o Presidente Ricardo Valentim referissem as medalhas de Cagliari e provocassem uma salva de palmas bem enérgica de todos os presentes, ainda antes da saudação inicial.

O clube, para além da vertente competitiva, que nem sequer é a mais importante, incorpora uma forte componente social nas suas atividades.

Miguel Vieira, da Lituânia a Cagliari

O Miguel ficou cego aos 20 anos. Estava a trabalhar em Angola e na interrupção para almoço descansou um pouco e quando acordou estava cego. Veio para Portugal para tentar recuperar a visão, mas não conseguiu. Procurou ao fim de algum tempo uma local para treinar judo já que em Luanda era praticante da modalidade. Disse que era cinto branco, mas rapidamente os treinadores do Clube de Judo Total se aperceberam que não era bem assim e confirmaram logo nos primeiros tempos que ele tinha um elevado potencial para ser um competidor com bons resultados. E confirmou-se. Foi ele que abriu o caminho aos outros judocas portugueses tendo participado na primeira prova internacional do judo paralímpico, ganhou a primeira medalha fora do país, em 2013 na Lituânia.

Foi o primeiro a participar num Campeonato da Europa, num Mundial e nos Jogos Paralímpicos (Rio de Janeiro, 2016).

Djibrilo. É isto que eu quero!

O Djibrilo chegou depois. Veio com um grupo para ver se gostava ou não do judo e, no final do treino, foi categórico “É isto que eu quero!”. Começou do zero e rapidamente evoluiu. Começou a participar em provas. O contacto físico, que é muito bom para os cegos, agradava-lhe e ele sentia capacidade e vontade de competir. Conseguiu o apuramento para os Jogos Olímpicos de Tóquio por ranking e agora conquistou esta medalha de bronze no Europeu.

A vida dos dois para os Jogos Paralímpicos de Paris está agora facilitada por terem sido separados os atletas de baixa visão daqueles que são cegos totais. Competem agora em provas totalmente distintas. Há no entanto um inconveniente, reduziram as categorias de peso de 7 para 4. Para o Djibrilo (m73kg) não tem qualquer importância, mas para o Miguel a questão do peso passou a ser muito importante na sua preparação para as provas.

Os abraços e as boas-vindas

À medida que fomos avançando para o dojo foram chovendo os abraços dos colegas de clube. As medalhas estavam presentes através da amizade e das palavras de entusiasmo. E Djibrilo recordava com um enorme sorriso “Aquela sensação de não poder voltar para trás. De sentir aquela adrenalina que nos confunde quando é preciso pensar no que vai acontecer. Mas o que é que eu faço, faço isto ou aquilo?. E os últimos detalhes, faço as pegas assim ou de outra maneira? Bem, chegamos ao momento em que afirmamos para nós próprios; que seja o que Deus quiser! O importante é eu dar o meu máximo”. Djibrilo aproveitou para condenar a comunicação social que não tratou os resultados obtidos de forma minimamente adequada. “Em quatro atletas, três lutaram pelas medalhas. E nada disto transpareceu em termos públicos. A televisão nem sequer fez menção”.

Não há tempo para descansar

Daqui a poucas semanas lá estarão no Mundial. Vai ser em Baku, já em princípios de novembro. A viagem é longa e torna-se muito cansativa. Mas o importante é estar preparado para a prova e essa preparação começa de imediato. Os estágios em Coimbra são um ponto central do plano, na capital do Mondego convivem e trabalham com atletas de todos os níveis e aproveitam para consolidar a amizade com os outros companheiros da Lusófona e do Porto. “Somos amigos e trabalhamos juntos para os nossos objetivos” adianta-nos Djibrilo a propósito de Rúben Gonçalves e Nuno Rocha.

No tapete a orientação do aquecimento é partilhado pelo treinador principal e por uma atleta de baixa visão. Todos acompanham. As indicações precisas sobre os movimentos a realizar, o ritmo de execução para cada gesto, a voz de comando com clareza e energia, tudo contribui para uma constatação surpreendente: é de todo igual ao treino de judo noutro clube qualquer, no entanto no tapete estão presentes vários atletas que são cegos ou que apresentam especificidades conotadas com a deficiência.

Um projeto com dimensão social

“Com a participação nos treinos e nas atividades do clube os atletas com especificidades e diferenças em relação aos ditos normais crescem no plano social e integram-se na sociedade de forma mais consistente, crescem ainda como pessoas integrais. Mas ao mesmo tempo, os outros, que os acompanham regularmente nessas atividades, crescem e desenvolvem-se na nova relação que estabelecem com a deficiência. Todos crescemos nestes processos. Veja-se que o número de praticantes que não são cegos de nascença, de raiz, é muito elevado. Muitos foram ficando cegos. E esta realidade leva à tomada de consciência que esta situação pode acontecer a todos e a qualquer um. Torna o tema da deficiência mais próximo e mais compreensível da parte de todo o grupo” estas foram as abordagens iniciais que Ricardo Valentim, Presidente do Clube de Judo Total, realizou para situar a dimensão social e pedagógica do projeto que permanece como uma referência central do judo chamado adaptado.

Apoios da FPJ foram fundamentais

Sobre os apoio a todo a atividade que é levada a efeito, o responsável da instituição insiste na filosofia do coletivo que passa por assumir que “nada ficará por fazer por falta de recursos. Se tivermos que ir à sua procura encontraremos de certeza, porque no seio do grupo, como já aconteceu várias vezes, encontra-se uma solução. Por exemplo, quando o Miguel foi à primeira prova internacional na Alemanha, foi um membros do clube que patrocinou a deslocação e a participação“.

“Isto é muito intuitivo. Não existem receitas predefinidas. Um treinador que orienta uma aula com uma heterogeneidade tão marcante, só consegue dinamizar a sessão com ritmo, proporcionando aprendizagens diversas, se tiver uma sensibilidade muito grande para o sentido das diferenças no plano pedagógico. Recordo-me de acompanhar o Miguel Vieira aos primeiros treinos no Jamor, que na altura eram associativos, e foi ele que teve que se adaptar, em várias fases de progressão. Agora em Coimbra existe um relacionamento de igual para igual que leva a crer que todos também se adaptaram a ele, assim como ao Djibrilo. De fato registou-se uma grande evolução. Desde os primeiros passos do Judo Adaptado com o Presidente Costa Oliveira até esta fase entusiasticamente apoiada pelo Presidente Jorge Fernandes, foram surgindo vários desafios. Isto era um sonho, com os apoios que fomos tendo da parte principalmente da Federação, chegámos a estes resultados. Nunca pensámos que fosse tão rápido”.

Uma questão de horas

O Miguel foi o primeiro atleta a conquistar uma medalha europeia e nós sabemos que não há desporto de competição e resultados, sem atletas. Eles são centrais nesta equação, mas os apoios são muito importantes a este nível. A Câmara Municipal de Lisboa, a Santa Casa da Misericórdia têm apoiado também de forma permanente. E, mais uma vez, a Federação Portuguesa de Judo que nesta matéria é absolutamente decisiva porque inscreveu esta área de atuação como uma área prioritária.

Somos pessoas, acima de tudo

A Margarida tem 5% de visão. Adquiriu uma tal autonomia que na escola ninguém acreditava que ela tivesse essa visão reduzidíssima. Isto significa que a segurança, a auto-organização, a tomada de decisões e de iniciativa que o judo proporciona, como quadro de desenvolvimento pessoal, tem impacto nas interações sociais que cada atleta vive no dia-a-dia.

Quando se fala de judo Inclusivo não é principalmente a possibilidade de cidadãos com especificidades conotadas com a deficiência poderem praticar uma modalidade desportiva que se inscreve nos desportos de combate. O inclusivo aqui tem um significado muito mais amplo e mais substancial no plano das relações sociais e até do próprio desenvolvimento. Se quisermos interpretar os resultados e os impactos destas dinâmicas encontramos, no plano qualitativo, matéria que vai bem para além do olhar simplista e redutor que encontramos na formulação “Eles também conseguem!”.

O impacto das medalhas

“Ainda não estamos a captar a importância destes resultados na afirmação do judo paralímpico” esta é a convicção de Ricardo Valentim que entende que houve um virar de página. Na rede informal de clubes de judo. que desenvolvem atividades regulares e sistemáticas neste domínio específico da modalidade estas medalhas do Miguel Vieira (J1-60kg) e do Djibrilo Iafa (J1-73kg), às quais deve ser acrescido o quinto lugar do Rúben Gonçalves (J2-73kg), vão incentivar a procura do judo como campo de experimentação para pessoas que desejam quebrar o silêncio da sua condição e assumir junto de terceiros que estão disponíveis para partilhar as suas dificuldades mas também as suas potencialidades. “Em Portugal podemos falar de uma dezena de clubes que se inscrevem neste perfil. Alguns participam no nosso estágio anual e temos oportunidade de partilhar experiências e pontos de vista. São clubes do Porto, Coimbra, Odivelas, Marinha Grande, da Margem Sul, do Algarve. enfim de várias localidades que adotaram este conceito inclusivo do judo e que procuram envolver-se com as comunidades locais e ser parceiros de associações e de centros especializados. Colocam o judo num papel de utilidade social e de cooperação comunitária. Isto vai ajudar a desbloquear e a romper com a deficiência envergonhada, vamos ter mais gente a procurar o judo nos próximos tempos“.

A nossa aprendizagem

A experiência com o primeiro atleta cego que veio participar no treino de judo é bem reveladora da aprendizagem mútua que ocorre nestas interações entre pessoas” relatou-nos o Presidente do clube. “Quando fui buscar o Carlos Dinis à estação estava bem nervoso. Na movimentação do balneário até ao dojo, que implicava descer umas escadas, agarrei o Carlos com força, nos braços como se tivesse a fazer uma pega de judo, para o ajudar a orientar-se. O Carlos foi rápido a declarar Não é preciso tante força, quantos lances de escadas é que há? respondi-lhe dois e disponibilizei-me para continuar a acompanhá-lo e a ajudar. Não é preciso, eu vou sozinho, respondeu-me de forma descontraída. Respeitei a opção dele mas fiquei preocupado. Surpresa minha quando cheguei ao tapete uns minutos depois, ele lá lá estava, vestido e preparado para treinar” concluiu Ricardo Valentim que não esquece esta primeira lição que nos revela que a disponibilidade para aprender é a condição inicial para participar em projetos de inclusão social.

Filipe, o Diderot do judo

Filipe Ramos é um cego total que fez o percurso integral, do cinto branco ao 1º Dan, no clube. Constitui, do ponto de vista pedagógico e até sociológico, uma referência incontornável para uma abordagem aos saberes do judo de forma multidisciplinar. O que sabe Filipe? A nossa capacidade limitada de interpretação leva-nos a relacionar o seu saber construído ao longo dos anos com a enciclopédia. Na verdade, para além do domínio das diversas técnicas, na sua sequência e na sua execução de pormenor, Filipe deve ter desenhado, com os seus códigos estéticos um gokyo que só ele conhece e consegue saborear.

“Tenho boa memória. Optei por progredir no judo pelo conhecimento e não tanto pela parte mais desportiva. Primeiro fixo a ordem e os nomes e depois associo imagens a cada técnica, Para unir todas as partes tenho que articular as diversas variáveis” clarificou Filipe de uma forma simples o método que utiliza para tratar toda a informação sobre o judo de uma forma coerente. A formação em biologia do Filipe Ramos pode ter aqui alguma influência. Apaixonado pelos pormenores, pelos elementos constitutivos, o judoca de longa data do Clube de Judo Total é acarinhado pelos seus companheiros pela forma como se dedicou a esta tarefa que o motiva de forma permanente.

“Primeiro quis saber tudo e depois trabalhei os pormenores. Se me referirem o-soto-gari eu sei exatamente como é que ela se executa. Lido de forma mais intensa com a técnica porque não funciono bem com as lesões no dia-a-dia. Confesso que o judo não era o meu desporto de eleição. Não me dizia grande coisa. Mas o ambiente que existia no tapete e no clube cativou-me” concluiu Filipe Ramos.

Randori

No tapete Fernando Seabra, o incansável treinador, anuncia “Vamos lá, é o último randori”. Ficámos à conversa com o Pedro Alves que tendo estudado em Portugal, em 1996 regressou a Moçambique e relançou o judo no país. Histórias das tropas de Samora Machel que ocuparam as salas de judo, da FACIM, da casa do Dhlakama e dos seguranças, do judo e da formação das polícias, muitas aventuras que ficaram agendadas para uma outra conversa. O judo em Moçambique fica para breve e o Pedro Alves será o nosso guia.

Saímos do CDUL, do Pavilhão 3, com a promessa de passar pela Ameixoeira, na pista Prof Moniz Pereira, onde o Clube de Judo Total tem as suas instalações permanentes: Neste momento ainda estão em obras. Aprender sobre judo inclusivo é aprender sobre a não-discriminação na sociedade. E haverá algo de mais importante que aprender sobre igualdade e fraternidade?

Fotos © Judo Magazine

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