REPORTAGEM – No “santuário” com Henrique Nunes (1)

O judo é uma paixão que não conseguimos controlar

Henrique Nunes, 81 anos, 8º DAN

O aperto de mão inicial, direto e caloroso, através da janela aberta da porta dianteira do carro, seguido do “Siga-me. Venha atrás de mim” indiciava uma entrevista rápida e muito formal. No percurso, estrada fora, até chegarmos ao “Santuário do judo”, pensei mil vezes na forma de organizar a fase inicial da conversa. Não podia desperdiçar esta oportunidade tão desejada: entrevistar Henrique Nunes e dar início às Grandes Entrevistas do Judo.

Conversar sobre judo

Quando entrámos e começámos a beber café, sentados face a face, foi fácil perceber que estava profundamente enganado e que os avisos do “feitio difícil do Henrique Nunes e o seu tom agressivo na relação com os outros” era uma falácia. Senti-me muito rapidamente à vontade. A conversa correu naturalmente e desde o início com muita cumplicidade. Queríamos conversar sobre as mesmas coisas: o judo, a sua história e o seu desenvolvimento.

Tinha à minha frente a representação viva mais importante e mais consistente da história do judo em Portugal e senti na postura e na voz o discurso do velho leão, que olha para o horizonte com convicções e com forças para afirmar aquilo que é bom para todos e que seria imperativo fazer.

Estou a afastar-me do judo

Leão que significa força, valentia, coragem e ousadia, marcado pelos tempos, duro nos seus julgamentos, conhecedor da história e dos desafios que se apresentam. Mas também jovem na defesa de pontos de vista que confluem todos para o mesmo ponto:  melhorar o ensino do judo e inverter alguns aspetos que o judo está a adotar por razões principalmente mercantilistas.

“Não me interprete mal, mas estou a afastar-me do judo. Não consigo manter-me numa posição expectante face aquilo que vejo, prefiro afastar-me. E já não tenho idade para certas coisas. Vou desfazer-me de alguns elementos do meu espólio. Comecei a oferecer algumas cassetes a pessoas de confiança que sei que irão cuidar delas e, pouco a pouco, quero ficar longe disto tudo” declarou de forma serena mas com a clareza de alguém que já tomou uma decisão.

Uma incursão rápida na História

“Venha, venha, vamos subir até ao primeiro piso” levantou-se e assumiu a função de guia. À passagem mostrou-me uma caricatura que fora realizada por um amigo quando tinha 18 anos.

Rapidamente mergulhámos nas figuras de referência da modalidade, nas suas histórias, nos seus percursos, nos momentos diversos que marcaram um ciclo inicial cujos nomes são conhecidos de todos: Lisboa Ginásio, Henri B. professor do Liceu Francês, Academia Portuguesa de Budo, Correia Pereira, Bastos Nunes, Costa Matos, Frigyes Torok, Judo Clube de Angola, Judo Clube de Portugal e tantos outros.

No Japão

Viajámos até ao Japão tendo por anfitrião Joaquim Fernandes, do Porto, amigo comum, que se tornou um homem-pivot na capital japonesa para os judocas e que acolheu Henrique Nunes numa estadia muito importante para o aprofundamento dos seus conhecimentos, no Kodokan.

A relação de Henrique Nunes com o Japão é estruturante. As grandes referências do Judo Kodokan pós-Jigoro Kano fazem parte das suas experiências e das suas aprendizagens. Trata-se de uma relação umbilical, uma espécie de grande fonte de inspiração e de saber.

O “santuário”

No primeiro piso entrámos no espaço que idealizei de mil formas desde que o João Nunes em Mafra me afirmou com a maior descontração do mundo “Fale com ele. Ele vai gostar e poderá visitar o “santuário”, você também vai gostar”.

“Ali em frente é a área reservada ao meu Mestre, à pessoa que mais admiro e de quem tenho imensas saudades” adiantou o nosso anfitrião sinalizando uma grande fotografia de Kiyoshi Kobayashi, aquela que é marca global do japonês que desde 1958 referencia o judo nacional em todas as suas dimensões, técnicas, culturais, profissionais e até institucionais.

Ao lado uma fotografia datada de 1966 com Henrique Nunes a receber de KK uma medalha de campeão nacional, uma das muitas, ao ponto de ser difícil recordar-se de todas.

Kiyoshi Kobayashi e Henrique Nunes

O Nureyev do judo em pé

“Kiyoshi Kobayashi era o Nureyev do judo em pé. Era difícil de igualar, pelo rigor, pela eficácia, pela elegância. No chão também era muito forte. Tinha formas de fazer as técnicas que só ele sabia. Infelizmente ele não quis revelar todo o seu conhecimento sobre o judo no chão. Eu bem tentei sugar as suas especificidades e apanhar todos os pormenores. Mas era difícil. A sua atitude face ao ensino dos outros pautava-se pela prudência e até alguma desconfiança.

Não podemos esquecer que no período da vinda dele para a Europa, outros japoneses instalaram-se em diversos países e ao fim de algum tempo, depois de mostrarem o que sabiam, foram descartados e recambiados para o Japão. Kiyoshi Kobayashi tenha essa reserva e ensinava às pingas” fundamentou Henrique Nunes a sua desilusão de não ter captado mais detalhes do judo de KK no chão.

O estudo do judo

Percebemos que o olhar que Henrique Nunes porta sobre as atuais falhas estruturais do ensino do judo nos colégios e nos clubes advém de uma experiência pessoal muito intensa. O estudo do judo não deve ser para alguns privilegiados ou para uma abordagem académica. No seu entendimento deve estar em todo o lado de forma organizada.

“A formação de base passa por conhecer o judo de forma integral, na sua essência. Não podemos ter cintos negros que não sabem executar um de-ashi-barai. Ou até treinadores ou instrutores que não conseguem distinguir o “barrer” do “ceifar” vaticinou de forma categórica.

Muitas vezes, no café, nos intervalos dos treinos, colocava em cima da mesa vários livros e revistas e comparava uma técnica concreta nas diversas publicações.

“Procurava as diferenças e as similitudes e assinalava com um lápis as minhas conclusões, os meus comentários. Procurava perceber em que daria cada uma daquelas abordagens. E depois trabalhava essas situações no tapete. Andei sempre à procura das melhores soluções para cada técnica. Conhecê-las e explicá-las como deve ser” adiantou o nosso interlocutor sobre o que entendia por “estudo do judo”.

Esta procura de informação e de fontes de auto-formação está na base do santuário. Aqui encontram-se centenas de vídeos, de DVD, de Revistas, de livros, de inúmeras publicações em suporte papel e audiovisual. Muitos vídeos em formato VHS já se encontram em suporte digital, mas uma quantidade significativa ainda se encontra na sua versão original.

Revistas do Kodokan da primeira metade do século XX, livros que são uma autêntica raridade, alguns do início do mesmo século e fotografias sem fim que ilustram um ciclo de vida do judo nacional e internacional são uma preciosidade que o “santuário” oferece aos nossos olhos.

A linguagem religiosa é aqui utilizada apenas como metáfora bem-humorada porque o espólio aqui presente emociona pela sua dimensão CONHECIMENTO.

Este é um contexto de SABER, de relação com uma produção técnica, cultural, atitudinal que integra a dimensão intelectual do judo.

Henrique Nunes é um storyteller que não fala especificamente do judo. Fala da sua vida que, na verdade, é a história do próprio judo. Relata-nos os tempos do Judo Clube de Portugal quando limpava os balneários, que varria a lona da área de treino e fazia trinta por uma linha para sobreviver e dedicar-se aquilo que mais amava: o judo. Mas o judo é isso também, um quadro de auto-organização da vida pessoal e desportiva em torno de uma paixão.

Com Henrique Nunes temos o privilégio de cruzar a paixão com o saber e nessa relação estrutura-se a base de todo o desenvolvimento sustentável. O outro, o desenvolvimento que afinal não passa de crescimento, tem por base a técnica e a gestão. O desafio será combinar esses fatores em doses adequadas.

Na próxima incursão no “santuário” (2) vamos falar de “histórias para serem contadas” e eventualmente iremos encontrar algumas pistas para um judo moderno baseado na tradição e nos saberes dos anciãos.

Henrique Nunes

Fotos © CR/JudoMagazine

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