06/10/2024

ENTREVISTA – Fernando Costa Matos, um velejador-navegador de judogi (1)

O primeiro atleta olímpico do judo português revela-se como homem multidesporto e como cidadão

Fernando Costa Matos, o primeiro judoca olímpico – Tóquio 1964

Cheguei alguns minutos mais cedo que o previsto e no Angolana, restaurante em Algés que respira frescura e ambiente familiar, já se vivia a azáfama da hora de almoço. Quando informei que vinha para estar com Fernando Costa Matos a reação foi instantânea: Ah! O Professor. Não deve tardar, chega sempre a horas e tem aquela mesa ali no canto reservada. Tudo era fácil e sentia-se uma delicadeza e o interesse em bem-acolher porque o “professor” é uma pessoa muito especial nesta casa.

As glórias do Algés

Na parede lateral direita uma fotografia de uma equipa de judo do Sport Algés e Dafundo marcava presença. Não era uma equipa qualquer: Matias, Cristóvão, Domingues, Ludovino, Bastos e muitos outros acompanhados por José Branco, treinador do clube naquele tempo.

Sentíamo-nos em casa e mais tarde iríamos verificar que “o dono disto tudo” (do restaurante) como o nosso interlocutor o nomeou, foi um praticante da modalidade esforçado, com uma paixão a toda a prova ao ponto de treinar e ir às provas no meio das suas andanças profissionais em restaurantes nos quais trabalhou ou cujos projetos dinamizou.

O contexto oferecia-nos uma boa relação com o judo, para ponto de partida, na conversa com o primeiro atleta olímpico do judo português (1964), mas por estranho que pareça, numa espécie de convenção informal começámos por falar de tudo menos de judo.

Um açoriano em Lisboa

Fernando Costa Matos não é apenas um excelente conversador é um apaixonado pelas “Histórias de Vida”. Episódios do quotidiano, pessoas com desempenhos muito particulares nos respetivos contextos de vida, situações surpreendentes relacionadas com outras modalidades e pequenas histórias intermináveis de “um açoriano em Lisboa”. O privilégio de o ouvir era nosso.

Retirei rapidamente da representação central que orientava o meu olhar sobre o entrevistado, o atleta, o treinador, o professor, vestidos com um judogi dos anos sessenta. Afinal era o homem, a pessoa, “o açoriano acidental” que percorreu meio mundo que estava ali à minha frente.

“Temos que por ordem na conversa”, reclamou sem grande convicção, porque afinal de contas ambos estávamos a apreciar a desordem temática e as incursões cruzadas nas experiências desportivas que ocorreram na vida de Fernando Costa Matos desde os tempos do liceu.

O mar

“Sempre tive uma grande atração pelo mar. Com 6 anos já sabia nadar, ou melhor, não me afogava. E o mar sempre me chamou. Ia à piscina que já não existe. Agora passa a estrada marginal por ali. Sou o sócio número 3 do Clube Naval de Ponta Delgada. Mas quando vim para Lisboa para continuar a estudar tive umas experiências menos positivas. Um dia convidaram-me para praticar vela e eu fui. Estava um frio de rachar e a água estava gelada. Para mim foi a primeira e a última. Nunca mais voltei e só nos Açores continuo a ir ao mar” adiantou-nos antes de nos fazer uma revelação que quis contabilizar, com o seu sentido fino de humor, como a primeira “notícia que me dava”.

“Sabe quem trouxe o voleibol para o continente? Pois fique a saber que foi um açoriano. Um engenheiro que era muito amigo do meu pai e que aprendeu, por sua vez, com os americanos em S. Miguel. Mais tarde, Augusto Cavaco, que chegou a ser treinador e até selecionador nacional introduziu a modalidade no Instituto Superior Técnico. Ele tinha recursos e apoiava financeiramente o voleibol a nível nacional e até internacional. Foi na casa dele, entre Sintra e a Praia das Maças, onde iria com alguma regularidade para almoços de grupo, que convivi com muitos atletas do volei.

Não me posso esquecer porque naquelas jornadas, de bom convívio, sobrava sempre para mim uma tarefa por todos indesejada: lavar a loiça utilizada na refeição por uma trintena de pessoas. Isto porque a regra era que o mais novo tinha essa incumbência e não falhava, recaia sempre sobre mim” recordou com boa disposição ao mesmo tempo que atacava de uma forma quase cirúrgica os chocos grelhados que saboreava com tranquilidade.

O curso no elétrico 15

Outras modalidades, para além do voleibol, iriam passar pela conversa. Não tivesse o jovem açoriano, nascido na freguesia de S. José de Ponta Delgada, sido um praticante de outros desportos como natação, vela, remo, waterpolo, andebol, futebol e algumas “perninhas” noutras que acabaram, mais tarde, por ser preteridas em favor do judo.

Estudante no INEF, com residência no lar no Jamor, Fernando Costa Matos entre as aulas e os treinos estudava no elétrico nº 15.  Aquele que ligava a Cruz Quebrada ao Terreiro do Paço. O percurso era realizado com os olhos focados nos livros e nos cadernos de apontamentos. Os treinos absorviam todos os seus períodos do fim-de-tarde. Quando regressava, à noite, acabava por “comer uma bucha” numa garagem-tasca que ainda estava aberta e dava para matar a fome, que era muita, depois de ter treinado algumas horas.

Um sonho do tamanho do mundo

Quem tem uma ligação tão umbilical com o mar consegue descobrir, num imaginário muito próprio dos ilhéus, o que existe para além do horizonte. Fernando Costa Matos não foge a regra. Afinal tinha um sonho. Dar a volta ao mundo num veleiro. Entrar pela linha que separa mar e céu e conquistar o oceano, com artes de navegar que se aprendem nas ilhas na maior parte das vezes para outras finalidades mais económicas.

Afinal a volta ao mundo que dará ao longo da sua vida será com um judogi, visitando vários países e participando em muitos campeonatos de judo.

“Aos 31 anos parei a competição. Senti que já não iria mais longe e as situações estavam a repetir-se. Mas vou relatar uma situação que tem a ver com a violação desse regra. Numa prova de equipas, com atletas que tinham boas condições para vencer, fui confrontado em forma de ultimato pelos atletas. Eles quiseram que eu participasse e competisse. E não me deram margem para dizer não. Então assim foi. Fui para o tapete e acabei por ganhar fazendo valer a minha experiência. Foi a última vez que competi e a equipa, para além do resultado, ficou feliz com este contributo, para mim, inesperado.

Tóquio Jogos Olímpicos 1964 – Fernando Costa Matos foi porta-bandeira

O Tona

“A última vez que participei num Campeonato do Mundo venci o campeão canadiano. Depois perdi com um francês que era canhoto. Nunca me dei bem com adversários com essa caraterística. À direita, não havia hipótese, entrava com facilidade. Mas com canhotos não conseguia fazer o que queria. Em Portugal só havia, naquele tempo, um ex-aluno meu que era canhoto e eu tentava adaptar-me. Mas não era fácil. Falando de ex-alunos o Tona (António Roquete) era o único que de vez em quando me projetava. Era muito forte e recorde-se foi quatro vezes aos Jogos Olímpicos” entrou assim o nosso interlocutor no tema do judo.

Nós sabíamos que a conversa que já tinha começado há muito ia agora entrar em domínios mais específicos ligados à modalidade. E tanta coisa havia para partilhar.

GRANDE ENTREVISTA | Fernando Costa Matos (1). Uma segunda parte desta entrevista será publicada brevemente na JUDO MAGAZINE.

Editado 23:32 | Clube Naval

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