ENTREVISTA – Viagem ao mundo dos homens bons

O judo liga pessoas e sonhos e a amizade prolonga-se até aos dias de hoje (2)

Grande Entrevista conduzida por Carlos Ribeiro

Fernando Costa Matos, uma conversa no restaurante Angolana em Algés

Fernando Costa Matos tem o espírito dos ilhéus. Olha para o chão que pisa com concentração e minúcia e, por outro lado, lança o seu olhar sobre o horizonte, por cima do mar, dando largas à imaginação e aos sonhos de criança. Uma unidade das diferenças que Vitorino Nemésio ilustrava de forma magistral com a afirmação “somos de carne e pedra”. Será que o isolamento ou até mesmo o desterro açoriano cria asas de Passarola, aquele pássaro-máquina que Bartolomeu Lourenço de Gusmão no Memorial do Convento inventou e que Blimunda Sete-Luas quis pôr a voar reunindo duas mil vontades de homens e mulheres com âmbar e éter?.

Uma coisa é certa Fernando Costa Matos viajou pelo mundo fora. Noutras passarolas e com outras vontades, mas sempre com uma curiosidade enorme em conhecer outras realidades e com um interesse especial em ampliar a influência do judo nas terras por onde passou.

Senhores passageiros apertem os cintos, vamos descolar

O nosso guia já vai de mala aviada a caminho da aeroporto. Vamos seguir os seus passos e tentar acompanhá-lo. Não vai ser tarefa fácil. O homem é forte e está cheio de genica e ainda por cima leva sempre com ele um fato de judo e um cinto negro.

Japão. Dois anos de vida, treino e aprendizagem

Os treinos eram repartidos entre a manhã e a tarde. Eram 4 ocidentais no Kodokan. O Donn Draeger realizava o plano de treino e de dois em dois meses, aproximadamente, vinha supervisionar e definia novas metas a atingir. Foram dois anos muito intensos.

“Quando regressei do Japão estava forte. Muito forte. Dizia-me o mestre Kiyoshi Kobayashi, nos treinos, que eu utilizava muita a força. Demasiada força. Queria que eu metesse mais técnica na execução e eu percebia a intenção mas a minha capacidade de embate era enorme” relembra o primeiro judoca olímpico português que teve o privilégio de estar em Tóquio 1964.

Treino com cargas. Donn Draeger

No livro que Donn Draeger escreveu sobre “Treino com cargas”, um clássico da literatura sobre judo, ele faz menção ao nome do nosso interlocutor na dedicatória da publicação, com agradecimentos e reconhecimento.

Donald Frederick “Donn” Draeger (15 de abril de 1922 – 20 de outubro de 1982) foi um professor e praticante de artes marciais japonesas conhecido internacionalmente. Foi o autor de vários livros importantes sobre artes marciais asiáticas e foi um pioneiro do judo internacional nos Estados Unidos e no Japão. Ajudou a tornar o estudo das artes marciais um tópico aceite na investigação académica.

Aeroporto. Destino Maputo (então Lourenço Marques)

Moçambique. A pedido de Noronha Feio Fernando Costa Matos desloca-se a Maputo. Ainda estava nos fuzileiros e tinha um mês de férias. A intenção do então presidente do Conselho Provincial de Educação Física de Moçambique era ajudar o judo a resolver alguns problemas e criar condições para um maior e melhor desenvolvimento da modalidade.

Mirandela da Costa, que tinha sido do curso de Fernando Costa Matos no INEF, trabalhava com Noronha Feio naquele tempo. Mais tarde viria a ser Diretor Geral dos Desportos.

O grande Sporting se Lourenço Marques

Um dos clubes no qual o judo tinha uma boa presença era no Sporting de Lourenço Marques. Segundo Fernando Costa Matos “Uma grande coletividade. Tinham instalações no centro da cidade e eram muito fortes em basquetebol”.

Álvaro Nascimento que trabalhava na Guerin era o homem de referência do judo no clube. “Sempre que vinha a Portugal treinava connosco. Era um apaixonado pela modalidade. Foi com ele que organizei a estadia e os treinos no clube” adiantava o nosso interlocutor que de seguida nos contou uma história que vale a pena conhecer.

Eusébio, o trabalhador

“Quando chegávamos ao clube, cedo pela manhã, ele já estava a treina remates. Era agosto e ele estava de férias. Mas não falhava. Pelo menos nas três vezes por semana que nós íamos para o judo ele já lá estava. Por trás da baliza, com iluminação noturna ativa, um “bando de pardais à solta”, como os cantou Carlos do Carmo, fazia de apanha-bolas.

Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto

Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos

“Um dia contei esta história ao Simões, do Benfica e ele ficou emocionado. Eu próprio fiquei a admirar o Eusébio pelo seu espírito de trabalho e de aperfeiçoamento permanente!.

José Maria Noronha Feio
1932-1990
Nasceu em Angola, na cidade de Nova Lisboa no dia 17 de março de 1932. Faleceu em 1990.
Noronha Feio foi um homem de emoções e de paixões. Foi um humanista, foi um sonhador
movido pelo labor de conhecer várias artes e conhecedor de vários saberes.
Foi um praticante de atletismo (salto em altura) e de voleibol. Na modalidade de voleibol
representou Portugal em várias provas internacionais. Atingiu, como praticante desportivo, o
mais alto prémio – foi internacional de atletismo e voleibol.
Como aluno frequentou o Colégio Militar e diplomou-se no Instituto Nacional de Educação
Física (ISEF), em 1953. Quando saiu do INEF, em 1967, assumiu a presidência do Conselho Provincial de Educação Física de Moçambique, intensificando a sua ação cultural, tendo sempre em mente a grande
modificação no estatuto da educação física e desportiva.
Em 1973, assumiu o cargo de Diretor Geral dos Desportos, em Portugal

Luanda, o judo em movimento

Por quatro vezes Fernando Costa Matos esteve em Luanda. Acompanhou a evolução do Judo Clube de Angola em diversas situações. No período marcado pela orientação de Frigyes Torok, um dos treinadores do núcleo duro do judo português liderado por Kiyoshi Kobayashi, Costa Matos participou em treinos e atividades de desenvolvimento da modalidade. Em trânsito para Maputo, passou por Luanda e só não foi padrinho da filha de Torok porque ela não nasceu, como chegou a ser pensado, naquela ocasião.

Mais tarde, regressado de Angola, quando o treinador de origem húngara, desde sempre dedicado ao judo tendo sido treinador dos Bombeiros dos Estoris desde 1966, admitiu ir para o Porto, Fernando Costa Matos encontrou-se com um dos mais antigos praticantes do judo em Portugal, Manuel Reis, que já tinha trazido o japonês Yamamoto nos anos 60 para orientar o clube e que aceitou de bom grado a vinda de Frigyes Torok para a direção técnica do tradicional clube da cidade Invicta.

Uma fotografia histórica com a presença de vários atletas de referência da época e de Frigyes Torok (à esquerda na fila em pé) e de Fernando Costa Matos.

O Porto, aqui tão perto

Saímos de Luanda e o Porto já está à nossa espera. Na viatura Kiyoshi Kobayashi e Costa Matos atravessam vilas e aldeias em direção a norte. A conversa tinha o ritmo de sempre. Quem vai com o mestre japonês fala e intercala com silêncios prolongados. Por sua vez Kobayashi solta de vez em quando uma palavras de concordância e termina com perguntas para que o diálogo não se apague. Sóbrio, como sempre, tem o olhar na estrada. Difícil, difícil era saber o que ele pensava a cada momento.

O destino era sempre o mesmo. Dojo do Clube de Judo do Porto, treino orientado pelo treinador japonês com o apoio de Costa Matos e depois do duche e conversas de balneário, a bifurcação inevitável que os estatutos sociais impunham: KK ia para Miramar para a residência de Manuel Reis, dirigente do clube e empresário de ourivesaria com tradição e prestígio no setor e Fernando Costa Matos ia para o Centro de Estágio onde prenoitava e aguardava pelo almoço do dia seguinte, com Kiyoshi Kobayashi. O regresso era uma cópia fiel da ida. A estrada, o carro, as conversas, as perguntas e os silêncios. Na verdade aprendia-se muito com os silêncios. Eram outros tempos de um judo muito hierarquizado mas ao mesmo tempo marcado pela grande proximidade.

Manuel Reis atento aos caminhos para que o Judo progredisse esforçou-se pessoalmente por encontrar Professores que o pudessem apoiar na árdua tarefa de dotar a cidade do Porto de um adequado Dojo. Foi assim que encontrou de férias no Porto,  no desaparecido Parque de Campismo do Lima, (propriedade do Académico Futebol Clube), o francês Mestre Hugnet.
Este, impressionado com a determinação de Manuel Reis mas sem disponibilidade para ficar em Portugal, enviou para o Círculo de Judo do Porto o seu irmão Jackie Hugnet, 2º Dan de Judo, que connosco permaneceu por uma década. (da história do CJP, site)

Na Beira, Moçambique, a caminho de Vila Pery

A dupla Noronha Feio – Mirandela da Costa continuava a confiar em Fernando Costa Matos para atacar os problemas do judo na então colónia portuguesa. E foi para a Beira, mais a norte, que desta vez o pedido foi formulado com grande segurança “Vais e no aeroporto tens o nosso delegado à tua espera. Não tens que te preocupar com nada” adiantaram, na altura, os mobilizadores das suas competências com uma grande convicção.

E assim foi. Habituado a operações de reconhecimento antes de se envolver em situações mais ou menos desconhecidas, desta vez o ex-fuzileiro, treinado e preparado para intervenções difíceis, ficou apeado e sem recursos porque como confessou “Não tinha plano B e nem sequer um número de telefone trazia comigo. O que é certo é que o tal Delegado não apareceu e fiquei num aeroporto enorme, com um ou dois aviões na pista, e sem saber o que fazer”.

O Tânger na Beira

Um funcionário do aeroporto, com ar zeloso, abriu algumas portas e fechou outras e fez-se notar por Fernando Costa Matos que andava à procura de uma alternativa para estabelecer as ligações com o judo local.

Observador e perspicaz, FCM interpelou-o numa das passagens “Oiça lá! Você não jogou futebol no União Micaelense?” surpreendido, o funcionário com pastas debaixo do braço, respondeu afirmativamente. “Você não é o Tânger?” insistiu Costa Matos e, depois da confirmação, com este pequeno milagre da diáspora açoriana tudo ficou facilitado a partir daquele reencontro, totalmente imprevisível, entre o filho do diretor da Associação de Futebol de Ponta Delgada e o enviado especial do judo que vinha da capital moçambicana.

Orientou o treino num clube de judo totalmente dedicado à colónia chinesa da região. Praticantes impecáveis. Quando se sentou no balneário, depois do duche, foi abordado pelo Rosário. Um judoca português que mediu a reação do experiente treinador e perguntou-lhe “Você não está satisfeito com isto pois não? São praticantes que não se interessam muito por aprender. Vêm aqui para descontrair e fazer um pouco de desporto. Se quer conhecer pessoas verdadeiramente interessadas tem que ir ao Chimoio. Eu levo-o lá e regresso para o emprego, aqui. O que me diz?” disparou sem dar oportunidade de grande reflexão e ponderação a Costa Matos.

Vila Pery – Chimoio

Uma coisa é certa chegou alta noite a Vila Pery, foi acolhido pelo Francisco Magalhães na casa deste e de manhã cedo foi acordado por um Leão da Rodésia, um cão de grande porte que lhe deu as boas-vindas à sua maneira.

O anfitrião tinha uma biblioteca incrível de literatura sobre judo e organizava safaris fotográficos já naquela altura. Era um aventureiro, culto e apaixonado pelo judo. À note era projecionista de cinema e levava a 7ª arte a muitas localidades. Foi através da mulher do “Xico Magalhães” que Fernando Costa Matos estabeleceu uma ligação particularmente importante para o judo em Portugal: António Correia Pereira.

Vila Pery, naqueles tempos

Fernando Costa Matos foi Presidente da Federação Portuguesa de Judo

No Monte Estoril com Correia Pereira

Na primeira visita a conversa não se concretizou, mas na segunda o diálogo teve lugar com grande elegância, não fosse António Correia Pereira um gentleman. Dogmático e conhecedor da modalidade como poucos, correspondia-se com Jigoro Kano. Foi, importa recordar, o primeiro português a ter uma graduação reconhecida pelo Kodokan. Tudo o que existia de literatura sobre judo, ele tinha na sua biblioteca.

A proposta que era necessário debater, entre os dois, era simples, face à situação indesejável de existirem duas entidades a atribuir graduações no país: Fernando Costa Matos propôs que todas as graduações existentes até aquele momento, independentemente da entidade que as tivesse atribuído, seriam reconhecidas. As graduações futuras teriam que ser validadas pela Federação Portuguesa de Judo organismo oficial da modalidade em Portugal.

Correia Pereira recusou e a situação manteve-se como estava nesta matéria de importância regulamentar mas também de união do judo nacional. A Academia de Budo encerrou portas em 1982.

António Correia Pereira. Poucos tiveram oportunidade de falar com ele. Tinha uma visão secretista do judo. Não o considerava como desporto de combate.

Niagara Falls, nos EUA

Saímos do Estoril e aterramos perto da fronteira com o Canada. Os responsáveis do judo americano convidaram os atletas olímpicos do judo para umas jornadas em terras do Tio Sam.

Um programa à americana, com road-show, conferências de imprensa e assinaturas de autógrafos em tudo o que era sítio. No final das jornadas os famosos churrascos com muita bebida e conversa à mistura.

Canadianos, ingleses, austríacos, filipinos e outros estiveram presentes. Os franceses e alemães não compareceram.

Mais tarde numa conversa com o Lionel Grossain, que também participou nos Jogos de Tóquio 1964 e terminou em 5º lugar, Fernando Costa Matos registou esta pérola da relação dos franceses com a língua inglesa ” Ah! era isso, um convite para ir aos Estados-Unidos? Estava em inglês, não percebi nada do que eles queriam e não respondi!” adiantou o grande atleta que foi Grossain .

O combate entre Okano (JPN) e Grossian (FRA) nos Jogos Olímpicos de Tóquio 1964 que terminou com um estragulamento (okuri-eri-jime) que levou Grossain a desmaiar (tendo sido reanimado rapidamente pelo próprio Okano).

VIAGENS E IMAGENS

As viagens de Fernando Costa Matos, que procurámos acompanhar, foram muitas mais. Como atleta olímpico, como competidor em Campeonatos do Mundo e em várias outras provas internacionais e com árbitro, treinador e dirigente do judo nacional. Esta é apenas uma amostra que reforçamos com algumas fotografias do seu percurso no judo e noutras atividades.

IMAGENS DE REFERÊNCIA

Fotos © Fernando Costa Matos reproduzidas por @cr-caixamédia

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