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GRANDES ENTREVISTAS | Judo Clube de Portugal, entre a tradição e a modernidade (2)
Quisemos saber como era. Saímos cedo, pela madrugada, a geada cobria os campos e a aldeia dormia, tranquila e silenciosa, à espera de horas mais decentes para despertar. Sessenta minutos mais tarde estacionávamos nas redondezas da rua de Campolide. O frio da manhã insistia em sinalizar a sua presença, batendo na face descoberta e nas orelhas desprevenidas.
A pergunta que não saia da minha cabeça era simples e direta “Como é que eles fazem para treinar duas vezes por semana a esta hora?”. Sentia-me um pequeno herói por estar a tentar, por uma vez, de viver esta aventura matinal. Entrei. A porta do Judo Clube de Portugal permitiu, sem qualquer obstáculo, um acesso rápido à área de treino. No percurso descendente da rampa de acesso ouvia-se uma voz de comando firme que orientava as ações no tapete.
Ali estavam uns doze praticantes que se repartiam pelo espaço iluminado e fresco em duplas interativas. Estes sim, eram heróis a sério. O aquecimento e o trabalho no chão estavam a terminar e os efeitos do treino fazia-se sentir em todos eles. O empenho era total e não havia desculpas para participações simuladas.
A aula das sete da manhã
A aula da elite
Para António Cunha, o decano do grupo com 84 anos, que veste o judogi há mais de 43 anos, os benefícios desta sessão, logo pela manhã, são inquestionáveis ” Sou comerciante em Almada e não conseguiria praticar judo se não fosse a aula das sete às oito. Para mim é um treino muito importante. Posso afirmar que estou vivo graças ao judo porque, não é só o exercício físico, é também pela camaradagem. Aqui apoiamo-nos uns aos outros” declarou o judoca veterano que salientou aspetos relevantes do perfil e das competências do treinador principal Fernando Seabra (que aliás funciona em dupla com o treinador nacional Jerónimo Ferreira) “Para além do nível de exigência e de um sentido apurado do pormenor, tem uma dicção clara e todos o ouvem sem dificuldades” enfatizou Cunha que tinha ao seu lado o filho, que também foi contagiado pela dinâmica matinal deste grupo muito especial “No ano passado passei a acompanhar o meu pai. Já vai fazer um ano e cá continuo. Sou o mais novo deles todos, mas nada disso importa. Aqui damos-nos todos bem, há uma grande camaradagem. A verdade é que quando se sai daqui fica-se com energia para o dia todo”.
Pai e filho partilham a aula da manhã no Judo Clube de Portugal
Uma aula que é marca do JCP
Para Fernando Seabra a aula das sete da manhã, que se mantém desde os tempos que Kiyoshi Kobayashi dirigia os treinos do clube e que também foi orientada, durante anos, por José Manuel Bastos Nunes “Comecei por treinar nesta aula por razões ligadas aos estudos. Quando era estudante não tinha horários que me permitissem treinar ao fim-da-tarde. Acabei por substituir o José Manuel Bastos Nunes quando ele se reformou e desde então, sempre em cooperação com o Jerónimo Ferreira, tenho esta missão a cargo ” adiantou Fernando Seabra que clarificou que são várias as razões que levam os praticantes a escolher este horário “a razão pueril consiste em vir a esta aula para fugir ao trânsito de Lisboa na hora de ponta da manhã” adiantou com um inegável sentido de humor, e prosseguiu “uma segunda razão radica na antiguidade das relações interpessoais que existe neste grupo. Conhecem-se há anos. É muito importante o que se passa no tapete quando treinam, mas não é nada secundário o que se vive no balneário. Ali a boa disposição predomina. Conversam, brincam, falam de negócios no fundo alimentam uma vontade comum: a de estar juntos” e para finalizar o nosso interlocutor referiu a terceira razão para esta participação entusiasta “a atividade física é essencial para estes praticantes, alguns já estão reformados, depois deste treino enfrentam o resto do dia em melhores condições, saem daqui bem dispostos e revitalizados em termos físicos e psicológicos” concluiu Fernando Seabra.
Os participantes nesta aventura matinal que António Cunha (decano) classificou como a aula da élite:
Alberto Teixeira Bastos, António Cunha (decano), David Ferreira, João Cunha, João Mourão, Jorge Azinheira, Manuel Cunha, Mário Bação, Nuno Jacinto,Nuno Cassiano, Orlando Paz que estiveram presentes no treino a que assistimos, e noutras jornadas também participam António Franco, Domingos Sampaio, Francisco Bobone, José Carlos Silva, Miguel Correia, Paulo Matias. Treinadores: Jerónimo Ferreira, Fernando Seabra
O kime-no-kata
A aula entre as sete e as oito da manhã teve, nesta sessão que presenciámos, por tema central o kime-no-kata. Fernando Seabra, apoiado sempre de forma discreta mas particularmente eficaz por Jerónimo Ferreira, apresentou num ambiente de grande concentração as diversas técnicas e os movimento da kata. Foram momentos de aprendizagem que envolveram todos os participantes. A sequência de atividades baseia-se na didática do judo que assenta num processo de demonstração pelo treinador seguida da experimentação pelos praticantes.
Viemos ao Judo do Clube de Portugal com uma referência-chave na cabeça, a coragem que estes praticantes veteranos demonstram ao darem continuidade a uma prática de dezenas de anos no clube, a aula das sete da manhã. Mas rapidamente percebemos que não se trata especificamente de coragem num sentido glorificador mas antes de “espírito do judo”. No fundo perpetuam no tempo as raízes da modalidade no país. São guardiões, de alguma forma estruturam um pouco o que poderíamos apelidar, sem arrogância, de um pequeno kodokan.pt.
Relembrando o kime-no-Kata
Fotos @cvribeiro | Judo Magazine