Os atletas do desporto paralímpico têm um sorriso feliz
GRANDE ENTREVISTA – Comité Paralímpico de Portugal
José Manuel Lourenço sublinha as especificidades do desporto paralímpico na véspera de Paris 2024
O Comité Paralímpico de Portugal assume-se como um grande coletivo que pugna por objetivos de interesse público. A sua direção trabalha como uma equipa que funciona na base da construção de consensos. Valoriza-se a diversidade de ideias, mas na tomada de decisão recorre-se ao debate e realiza-se um verdadeiro esforço para que a convergência de opiniões aconteça naturalmente. “Uma vez votei contra uma proposta que eu próprio apresentei. O debate orientou-me para outra abordagem do assunto” adiantou-nos José Manuel Lourenço, Presidente do Comité Paralímpico de Portugal, instituição que visitámos para conhecer um pouco melhor os dados sobre a presença dos atletas paralímpicos portugueses nos Jogos de Paris. Aproveitámos para contactar diretamente com o frenesim instalado nos diversos departamentos da instituição, um ambiente agitado que é próprio das fases finais de preparação dos grandes acontecimentos. Os Jogos Paralímpicos de Paris 2024 terão lugar na capital francesa entre 28 de agosto e 8 de setembro.
José Manuel Lourenço, Presidente do Comité Paralímpico de Portugal
“Acaba de ser confirmada a participação de Simone Fragoso em Powerlifting e sendo assim teremos 10 modalidades em Paris, o que constitui um recorde absoluto. Recorde-se que em Tóquio 2020 a presença portuguesa cingiu-se a oito. Trata-se de uma excelente notícia para todos nós. Talvez para o Chefe de Missão a satisfação venha a ser mitigada com alguma ansiedade já que a Simone tem uma pequena estatura. aliás muito peculiar, o que dá origem a algumas complicações na gestão dos equipamentos, sobretudo quando isto acontece em cima da hora” informou-nos o Presidente do CPP com algum humor e até boa disposição depois de ter assinado documentos sobre a aceitação da quota do Powerlifting. Recorde-se que Simone Fragoso esteve presente em Pequim 2008, em Londres 2012 e no Rio 2016, na modalidade de natação, tendo posteriormente reorientado a sua prática desportiva para o levantamento de pesos de potência.
Os Jogos, Olímpicos e Paralímpicos, são para os críticos de serviço da praça mediática uma boa ocasião para opinarem sobre a composição e a dimensão das missões de Portugal. Por vezes são adiantados julgamentos sumários negativos e só muito raramente apreciações equilibradas. Procurámos conhecer a visão do Comité Paralímpico de Portugal sobre a relação tantas vezes evocada entre a base e o topo da pirâmide, ou seja entre o número de praticantes de desporto e o Alto Rendimento desportivo.
JM – Será possível avaliar a representatividade das missões aos Jogos Paralímpicos tendo em conta esta equação?
JML – A pirâmide a considerar não deve ser a invertida. Pelo contrário, deve ter uma base larga. É na medida que essa base existe que poderão surgir talentos que ao evoluírem poderão chegar a representações de Portugal nos Jogos Paralímpicos. É quase uma verdade de La Palisse. É claro que falta no país um projeto nacional para o desenvolvimento desportivo. Admito que possa privilegiar algumas áreas desportivas, porque por vezes é necessário colocar os recursos disponíveis de forma seletiva. Há países que o fazem por não terem condições para investir em todas as modalidades e apostam naquelas que têm melhores resultados ou melhores condições de desenvolvimento. Isso não significa ignorar as outras modalidades que também devem ser apoiadas. Mas devem ser assumidas opções quando os recursos são escassos.
Trata-se de um projeto de longo prazo que não se realiza num ciclo. O reforço das verbas para as federações desportivas, nomeadamente para aquelas que integram o Programa Paralímpico, pode ser, no imediato, uma base para melhorar a situação enquanto que os resultados de um Plano mais vasto não aparecem. È preciso pensar que os Jogos de Los Angeles estão aí no dobrar da esquina.
Entretanto, julgo que devem existir projetos específicos de desenvolvimento desportivo dirigidos a pessoas com deficiência. Com verbas que seriam complementares e que não deveriam retirar apoios às atuais bases de financiamento das diversas instâncias federativas.
Uma abordagem em “vol d´oiseau” ao desporto paralímpico
JM – O financiamento do desporto paralímpico não deveria ser considerado também na sua vertente de inclusão social e não apenas na sua relação direta com o desporto de competição?
JML – Existe um equívoco na sociedade e no mundo do desporto sobre o lema desporto para todos e a sua relação com o desporto paralímpico. Quando estamos a mencionar no desporto paralímpico, Campeonatos do Mundo, provas internacionais, Jogos Paralímpicos, estamos a falar de Alto Rendimento. No desporto para todos podemos estar a falar de práticas desportivas de lazer. Por certo o desporto paralímpico pode ser incluído no desporto para todos, numa perspetiva muito ampla. Mas os atletas paralímpicos devem ser vistos como atletas de Alto Rendimento. O Miguel Vieira e o Djibrilo Iafa, do judo, são atletas de Alto Rendimento, estão em posições relevantes dos rankings mundiais. Participam em provas nas respetivas categorias de peso, no caso com outros atletas que também são cegos e/ou com baixa visão.
Importa recordar que as primeira atividades do movimento paralímpico não tinham uma relação direta com o desporto propriamente dito. Trataram-se de ações de reabilitação, num hospital, depois da 2ª Guerra Mundial, com traumatizados do conflito global que assolou a Europa e o Mundo. Eram indivíduos com lesões na coluna cervical. O objetivo do médico-neurologista alemão, Dr. Ludwig Guttman que abriu um centro de lesões espinhais no Hospital Stoke Mandeville, era dotar os pacientes com força muscular para poderem acionar com sucesso cadeiras de rodas, para se movimentarem.
Nesta intenção esteve presente a ideia de uma certa autonomia e de tornar as pessoas em reabilitação úteis para a sociedade. Nesses termos específicos a iniciativa foi de facto inclusiva. No fundo pretendia-se que passassem a ser cidadãos com direitos e com condições para participarem na vida em sociedade. Rapidamente estas iniciativas baseadas no esforço tornaram-se motivo para competição, para disputa entre pares e, em1960, em Roma, foram realizados os primeiros Jogos Paralímpicos. Só mais tarde foram estabelecidos mecanismos de cooperação com a organização dos Jogos Olímpicos, que viabilizaram a atual organização conjunta, com uma única estrutura coordenadora dos dois eventos.
Importa não esquecer que o Presidente do Comité Paralímpico Internacional adiantou um lema que estabelece o objetivo para o movimento de “mudar o mundo”.
JM – O que nos revela a geografia das instituições [associações, clubes, cooperativas] que dão corpo à prática desportiva de pessoas com deficiência e em que medida essas organizações serão suficientes para dar continuidade ao movimento paralímpico com atletas no Alto Rendimento?
JML – Precisamos de clarificar, quando falamos de geografia, se nos estamos a limitar ao território ou se também queremos abordar a geografia na sua vertente humana.
Nesta matéria importa ter em conta a realidade das CERCI. São uma rede que reúne um número muito significativo de pessoas com deficiência em todo o território nacional e são imprescindíveis em áreas como o emprego ou atividades profissionais protegidas , aliás em áreas que o Estado deveria ter maior participação e responsabilidade, mas são essas entidades privadas que desempenham esse papel muito relevante. Já em matéria de desporto não conheço de forma profunda a realidade existente, sei é que o desporto paralímpico dá poucas oportunidades a pessoas com deficiência intelectual. São poucas as situações que são contempladas [atletismo, natação], mas as cotas são muito reduzidas. Espero que esta situação venha a evoluir no futuro.
Em termos geográficos é necessário sinalizar que a repartição das pessoas com deficiência no país acompanha proporcionalmente os aglomerados populacionais dos diversos territórios. Um estudo que realizei envolvendo todos os concelhos do país, há uns anos atrás, baseado em dados do INE com destaque para Censos 2011, desfez o mito da existência de mais pessoas com deficiência na proximidade dos centros de reabilitação que nas outras zonas do país. Da mesma forma, no plano das condições de apoio, por exemplo com meios para reabilitar, sem absolutizar ou generalizar, podemos admitir que em zonas rurais do interior as práticas solidárias e de cidadania, para com as pessoas com deficiência, serão mais efetivas que nos contextos urbanos densos. Há municípios nesses territórios que criaram instituições com essa vocação, o que é particularmente meritório.
Importa é conhecer o que é realizado em cada uma dessas instituições que se encontram na nossa periferia, por vezes no nosso bairro. Devemos tentar perceber o que está acontecer do outro lado dos muros, o que existe depois da porta de entrada. O mais importante é assumirmos um papel de cidadãos ativos e estarmos atentos e envolvidos nas iniciativas dessas organizações porque elas funcionam para o bem comum e merecem o nosso apoio.
JM – Como estão a ser analisadas as qualificações e o preenchimento de quotas para os Jogos Paralímpicos de Paris, sabendo-se que estão preenchidas 27 em 10 modalidades?
JML – Tinha um prognóstico de 25, mas enganei-me e ainda bem que me enganei porque serão 27 e quanto a modalidades serão 10, o que é muito positivo. A entrada da Simone Fragoso também reforça a participação feminina o que é particularmente relevante já que temos dificuldade em recrutar atletas femininas para o Alto Rendimento.
Não vou entrar num excesso de entusiasmo com estes dados relativos a Paris. Nos tempos vindouros vamos ter dificuldades em realizar a substituição de vários atletas que estão em fim-de-ciclo. São nomes importantes do desporto paralímpico de Portugal. Mas como tudo, o seu ciclo no Alto Rendimento vai ter um fim. E não estão a surgir novos valores que garantam a continuidade da fase atual.
Talvez a participação mais alargada que teremos em Paris possa vir a ajudar na divulgação que será certamente levada a efeito depois dos Jogos. Mas um atleta não se faz de um dia para o outro. Gostaria que em Los Angeles viéssemos a ter a mesma representação nacional, mas vai ser difícil. Temos que reforçar as nossas ações de divulgação de que pode ser exemplo o Dia Paralímpico Jovem, jornada durante a qual é possível experimentar 22 modalidades e contactar de forma muito prática com o desporto paralímpico.
Esperemos ainda que a relação entre o desporto paralímpico e a saúde evolua e que as parcerias com o Ministério da Saúde sejam uma realidade no futuro. A redução de custos de saúde pelo facto de existirem atividades desportivas regulares deveria ser tida em conta nas estratégias ministeriais e consequentemente ser dada maior importância à divulgação dos benefícios da prática desportiva para a saúde da população.
Já agora, nesta relação com a saúde, importa frisar que a pessoa com deficiência não tem que ser considerada doente, por princípio. Pratica um desporto, que terá que ser adaptado, sem ter qualquer impedimento por doença.
A importância da formação no desenvolvimento do desporto paralímpico
JM – Sobre as competências específicas para lidar com as exigências do desporto paralímpico coloca-se certamente a questão da formação de quadros especializados. Serão suficientes os técnicos que funcionam neste universo do desporto nacional?
JML – O número de técnicos é claramente insuficiente. Mas existem boas práticas que podem servir de exemplo. É o caso, por exemplo, do Clube de Judo Total e do Futebol Clube do Porto. Haverá outros, mas estes são nitidamente referências de qualidade técnica e de dedicação-
Mas o mais corrente é a situação de ausência de enquadramento formativo que pode ser evidenciado, nos cursos de formação de treinadores, pela reduzida carga horária [2h] reservada ao desporto adaptado. Da mesma forma, em alguns casos como a formação de Nível III, nem uma hora sequer está prevista no currículo.
Sendo assim é urgente mudar este paradigma da formação de treinadores. Trata-se de apoiar o desenvolvimento de competências relacionadas com a ligação e relação com as diversas pessoas que praticam uma determinada modalidade. Estão a sair das faculdades centenas de pessoas formadas para virem a exercer atividades profissionais na área do desporto e que não têm qualquer preparação para uma abordagem qualificada à diversidade dos praticantes.
JM – O Clube de Judo Total e o FCP?
JML – O CJTotal é um oásis no país. Realizam inclusão a sério. Não juntam as pessoas, promovem uma prática diária de inclusão. De facto o país precisa de muitos mais Fernados Seabra e Jerónimos Ferreira.
Da mesma forma o Futebol Clube do Porto cuida de dar resposta a todos aqueles que o procuram. Não abandonam as pessoas caso não tenham resposta naquele momento e indicam clubes na sua proximidade que podem ser uma solução imediata.
Ambos já foram vencedores do Prémio Inclusão. A minha vontade será que muitos outros clubes recebam este prémio no futuro.
JM – E sobre as expectativas para Paris 2024?
JML – O objetivo de participar, só por si, é insuficiente. Os atletas têm objetivos e para todos eles a meta é a própria superação. Mas os objetivos devem ser globais. Para além de competir e eventualmente de vencer, os atletas estão a representar o seu país e devem fazê-lo com dignidade Digo aos atletas para não prometerem medalhas. Cada atleta tem que prometer a si próprio que dará ao seu melhor, isso sim é importante.
Por sua vez a representação do país decorre durante todo o período da participação. E esta meta é para todos os membros da missão, atletas, treinadores, parceiros de competição entre outros.
Referi os parceiros de competição. Trata-se de uma função específica nas provas do desporto paralímpico.. Por exemplo o boccia terá 15 participantes dos quais apenas 7 são atletas. Na natação, quando a prova é de 100 metros, para além do atleta têm que estar mais duas pessoas na piscina em apoio ao nadador.
Uma nota final, os atletas do desporto paralímpico têm um sorriso feliz. Também revelam raiva quando perdem. Mas no geral sorriem com felicidade. Claro eu prefiro os momentos dos sorrisos felizes, isso também pode significar que estão a ganhar. E quando eles estão a ganhra é o país que ganha também.
Fotos – CVR – Judo Magazine