Para além das medalhas, a ética no desporto

PARIS 2024 – OPINIÃO – Bruno Avelar Rosa
Há já vários anos que utilizo a atitude do atleta espanhol Iván Fernández numa corrida de corta-mato como dilema ético nas aulas e formações que vou dando, em particular no âmbito do PNED. O objetivo, como em qualquer dilema, é mais do que chegar a uma resposta consensual, o de discutir perspetivas sobre o valor e os valores do desporto.
O acontecimento resume-se da seguinte maneira (e pode ser visto aqui) a poucos metros da meta, o atleta que liderava a corrida, o queniano Abel Mutai, parou, pensando ter chegado ao fim da mesma. Foi quando Iván Fernández, que vinha um pouco atrás, deu um empurrão no seu opositor e lhe indicou que a meta estava mais à frente, não aproveitando a vantagem que o erro do queniano lhe proporcionara para ganhar a corrida.
Na altura, o próprio treinador de Iván Fernández disse que não teria feito o mesmo que o seu atleta, mas que o ato que este teve o deixara orgulhoso.
Nos debates em que me vi envolvido ao apresentar este dilema ético a diferentes grupos de alunos universitários, treinadores e futuros treinadores de diversas modalidades, houve sempre um fator-chave na discussão: o facto da corrida não estar ao nível de um Campeonato da Europa, do Mundo ou dos Jogos Olímpicos, porque aí o peso da medalha, e a sua importância, diminuiria a probabilidade de ocorrência de tal atitude.

Iuri Leitão, um campeão com princípios éticos na sua prática desportiva profissional
Ora, Iúri Leitão ganhou ontem a medalha de prata na prova de Omnium, em ciclismo de pista.
Em certo momento da prova, o atleta português não aproveitou uma queda do francês que viria a ganhar a medalha de ouro, parando para esperar, porque seria injusto “perder o ouro daquela forma”.
Não tenho, e não creio que exista, uma posição incontestável sobre esta matéria. Cair, aleijar-se, falhar fazem parte do jogo e, portanto, não veria a vitória de Iúri Leitão como resultante de uma ação negativa (ou da ausência de ação). Mas, por outro lado, a ação realizada é resultante de uma intenção que é, indiscutivelmente, positiva. E é positiva porque, além do dilema ético – que se mantém, foram revelados os valores pelos quais se rege o desportista, o homem, a pessoa Iúri Leitão. Com efeito, a a sua atitude demonstra que, mesmo tratando-se de um ouro Olímpico, é possível decidir não em função do valor do metal mas em função de outro tipo de valores. E isso, por si só, é extraordinário (além de trazer novos argumentos para a discussão do dilema ético em causa).
E, confesso, mesmo não achando que tivesse de o fazer, Iúri Leitão ofereceu-nos uma demonstração cabal de como pode ser vivido o desporto e a vida social num país que discute até à exaustão quem engana quem nos mais diferentes setores da sociedade, mas que treina menos e compete pior do que o faz Iúri Leitão.
Parabéns Iúri Leitão. E obrigado! É com ações como estas que se constroem os alicerces de uma cultura. O contributo que deste é inestimável! Esperemos que chegue às escolas, aos clubes, a todo o lado, fomentando nas crianças e jovens do nosso país a aprendizagem daqueles valores que são verdadeiramente essenciais para o exercício da cidadania.
Bruno Avelar Rosa
