Ser humano atleta

Os mitos das super-heroínas caem por terra quando as pessoas que também são atletas tomam a palavra
O tema não é novo. Antes pelo contrário. Mas também é dos mais descartáveis de entre todos aqueles que circulam nos meios do desporto e das áreas que mais diretamente lhe estão associadas como a saúde mental e o bem-esta-estar social.

Amandine Buchard, Maria Siderot e Bárbara Timo
Superação, superação, até à superação final. Esta parece a rota estabelecido para os campeões. Não há paragens de autocarro nem estações de comboio para refletir ou apenas para descansar.
Lembram-se? “A ginasta Simone Biles, nascida em Columbus, Ohio, chocou o mundo ao afastar-se e não participar na final da equipa de ginástica artística nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020”.
As abordagens voluntaristas dos processos ditos de superação, sobretudo dos atletas que integram os níveis muito elevados como o Alto Rendimento, omitem muitas vezes uma realidade que fica escondida. Mais importante que os atletas são os negócios e o prestígio das nações que financiam, muitas vezes a baixo preço, a sua promoção internacional
Apresentam-se aqui três casos, três atletas, três mulheres que tomam a palavra sobre a sua própria condição. Amandine Buchard, Maria Siderot e Bárbara Timo pronunciaram-se de coração aberto nas redes sociais e nós damos eco ao sofrimento assim como à vontade e à capacidade que manifestaram de reencontrar equilíbrios perdidos.
Amandine Buchard, medalhada olímpica em Paris
“Esta Olimpíada, embora mais curta, pareceu-me infinitamente longa. Esta medalha de bronze, apesar da cor, tem um significado profundo para mim…
Completei dois ciclos olímpicos, 8 anos sem quase nenhuma interrupção, com o sonho de levar para casa as mais belas medalhas. Isto exigiu um trabalho árduo, pontuado por inúmeras lesões, umas mais graves que outras, tanto a nível físico como psicológico.
O ano passado foi particularmente difícil… À medida que os Jogos Olímpicos se aproximavam, por vezes tive a impressão de que a vontade de estar nos tatamis estava a desaparecer. Vi-me num turbilhão, dividido entre o possível excesso de trabalho e a doce chama do judo que parecia estar a apagar-se. Lutei e, movido pelo meu instinto competitivo e pela vontade de orgulhar aqueles que me apoiam, consegui continuar a ter sucesso. Mas sentia-me tão vazia…
Foi então que tomei a decisão de me afastar do mundo do judo e da minha equipa para me voltar a focar em mim e pensar no que realmente queria. No fundo, queria viver esta aventura em casa, mas como o conseguiria?
“A única má escolha é não ter escolha.” Tive de tomar decisões ousadas, insólitas, mas necessárias, apesar da proximidade com os Jogos Olímpicos.
Através destas escolhas, encontrei o meu caminho. Aprendi muito sobre mim e descobri um novo equilíbrio, cheio de energia e motivação para novos projetos. LA2028
Gostaria de agradecer a todos os que me apoiaram ao longo deste percurso. A começar pela minha “f-FRI-lle”, com quem passei todos estes momentos. Vais reconhecer-te, eu amo-te e ficarás para sempre no meu coração.
Obrigado ao meu clube, o PSG Judo, bem como ao Valência, com um pensamento especial para o Nico e o Sugoï.
À minha querida, que foi a minha rocha nos momentos mais difíceis, aquela que me enxugou as lágrimas e que me traz tanto amor todos os dias.”
Texto de Amandine Buchard.

Amandine Buchard, uma atleta que entretanto encontrou na dupla relação judo-rugby de sete uma nova plataforma de equilíbrio mental e desportivo
Maria Siderot, uma dor profunda
“Este ano foi um dos mais difíceis da minha vida. Enfrentei inúmeras dificuldades, desde o falecimento do meu pai, e pela 3 vez consecutiva rotura do cruzado anterior, até não conseguir o apuramento para os Jogos Olímpicos. Cada um desses acontecimentos abalou profundamente o meu mundo e a minha perceção sobre mim mesma.
Questionei quem sou, o que quero para a minha vida, e vi me envolta em dúvidas que nunca tinha enfrentado antes.
Houve dias em que, para não mostrar as minhas fraquezas, escondia a dor que sentia. Sempre me ensinaram a ser forte, a enfrentar os desafios de cabeça erguida, mas a verdade é que isso começou a consumir me por dentro. Passei dias inteiros deitada na cama, sem vontade de fazer nada, a perguntar me o porque que a vida parecia querer derrubar me… Sentia-me incapaz de reagir e cada vez mais isolada, como se o mundo à minha volta estivesse em silêncio, e eu completamente só.
A saúde mental acabou por pesar muito mais do que as três cirurgias ao joelho que fiz. A dor emocional foi maior do que qualquer derrota desportiva. Cheguei a um ponto em que olhava para o espelho e já não via nada de significante… a imagem que via refletida era de alguém que sentia ter falhado, de um fracasso, e isso doeu profundamente.
Mas, com o passar do tempo, percebi que era normal sentir me assim, atendendo a tudo que se estava a passar. O sofrimento faz parte da vida e, às vezes, precisamos dar tempo ao tempo para curar as nossas feridas. Acredito que, por mais difícil que seja o caminho, a dor pode ser transformada.
Afinal, os momentos de maior adversidade podem ser também os momentos que nos preparam para o nosso verdadeiro potencial.
Hoje compreendo que não é fraqueza admitir que estamos mal ou pedir ajuda quando precisamos. O que realmente importa é o que fazemos depois, como escolhemos continuar, mesmo que seja com pequenos passos. E cada dia que passa é mais um passo em direção à minha reconstrução.
A vida pode tentar derrubar nos, mas a nossa força está em levantarmo-nos uma e outra vez.”
Texto de Maria Siderot

Maria Siderot, atleta do Sporting Clube de Portugal que compete em -52 kg
Bárbara Timo, “o desporto olímpico não é saudável”
“O desporto olímpico não é saudável e, se calhar, não devia dizer isto, porque vai desmotivar muitas crianças e jovens, mas não é saudável e isso vai ter um custo”, assumiu Bárbara Timo.
“O treinador, o psicólogo, o nutricionista, porque peso 70 quilos e desafiei-me a competir na categoria de -63 kg e isso obrigou-me a treinar e a competir com fome”, reconheceu.
“Não fui para Paris para competir, fui para disputar medalhas. Ter ficado logo ali [eliminada no primeiro combate] foi muito complicado. Não sei reagir a uma derrota, só sei reagir após uma derrota e depois desse luto”, admitiu Timo.”
A judoca adiantou estas reflexões no segundo congresso S4 (Safety, Security, Service at Sports Events), organizado pela Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto (APCVD).

Bárbara Timo atleta do Sport Lisboa e Benfica e das seleções nacionais.