José Manuel Bastos Nunes, um ano depois

Uma sistematização plural do seu percurso e da sua experiência seria útil para o judo nacional
Está por realizar uma biografia de José Manuel Bastos Nunes que se inscreva no contexto da evolução da modalidade ao longo dos anos, até aos nossos tempos, isto porque a fase das emoções profundas ligadas ao seu falecimento já passou. Há um ano tratava-se de lamentar a sua despedida de entre nós e de recordar os momentos particularmente relevantes da sua vida relacionados com o judo. Hoje a pior forma de atribuir importância ao legado de José Manuel Bastos Nunes consiste em divulgar o elogio fácil e em declarar, numa base quase religiosa, que o seu contributo para a modalidade será “eterno”.
Em que domínios poderão ser realizados esforços para sistematizar a experiência de JMBN?
1º Da recolha de testemunhos realizados após a morte do treinador sintrense pelo Judo Magazine, em curtas entrevistas, destacam-se referências técnicas, competitivas, pedagógicas e outras no campo do judo, mas são ainda valorizados aspetos específicos de caráter e de dimensão mais humana que importa ter em conta. Assim judoca e homem justificam ambas uma leitura de percurso desapaixonada que quanto mais próxima da realidade, melhor, porque aprende-se com a diversidade que a vida imprime em cada caminho percorrido e pouco se beneficia com as grandes declarações unilaterais e sem grande fundamento histórico.
2º Uma marca da orientação para o judo de JMBN radica na chamada “linha dura”. Trata-se de uma abordagem que os mais antigos praticantes em Portugal conhecem bem. Recorde-se o treino particularmente emocionante organizado no Judo Clube de Portugal, na aula das 7 [sete] da manhã, que juntou dezenas de judocas de vários clubes e que valorizou de forma entusiasta esta marca que foi solenemente recordada. Mas a “linha dura” representa exatamente o quê na evolução do judo? Poder-se-á relacionar com esta visão as vertentes da persistência, do treino para enfrentar dificuldades, da organização interna para ultrapassar os próprios limites e claro o da disciplina cega, esta claramente associável ao espírito militar. Encontramos algumas destas componentes no treino dos grupos de intervenção especial no domínio militar e policial como são exemplo os Rangers, os Comandos, os Fuzileiros e os polícias dos corpos de intervenção urbana. Assim numa categorização informal poderíamos admitir que o judo orientado por JMBN situava-se principalmente no paradigma “militar” e hierárquico, um judo herdado na cultura militarista de uma das facções do judo japonês.
3º A simplicidade parece ser uma das grandes virtudes do homem e do judoca José Manuel Bastos Nunes. Se revisitarmos os testemunhos recolhidos pelo Judo Magazine em janeiro passado, encontramos inequivocamente um traço da personalidade de JMBN estruturado por uma vida simples. Nesta dimensão surge à evidência que enquanto o judo foi amadurecendo e evoluindo para um desporto de massas, inscrevendo-se como desporto olímpico a par de outras modalidades e transformando-se numa prática de lazer individual e das famílias, a relação ao longo dos anos com a modalidade que o treinador que actuou principalmente em Sintra foi antes de mais a de uma arte marcial. Tudo indica que a sua postura foi-se orientando por uma norma de conduta de discípulo prolongando os longos anos nos quais conviveu com Kiyoshi Kobayashi.
4º A tecnicidade de José Manuel Bastos Nunes constituía um atributo maior do judoca que atingiu a graduação de 9º DAN antes de todos e qualquer um. Segundo os seus contemporâneos da prática do judo no Século XX constituía um autêntico privilégio assistir e observar, numa aula de judo, a apresentação de técnicas como harai-goshi. Mas hoje, com um investimento mais significativo nas katas, o que poderia ser considerado legado específico de JMBN nas formas de executar algumas técnicas que marcavam o seu judo da mesma forma que o Uchi-Mata era a marca de Henrique Nunes, Sasae-Tsuri-Komi-Ashi de Frygies Torok, a título de exemplo. A sua relação com as graduações que foi avalizando suscitaram, a seu tempo, alguma controvérsia. Mas o cinto vermelho que lhe foi atribuído surgiu como consensual, isto apesar de outros “veteranos” e “fundadores” da modalidade como Henrique Nunes, Fernando Costa Matos, Frigyes Torok, entre outros, apresentarem percursos compatíveis com uma distinção tão elevada.
Assim, atendendo a estas notas dispersas, o que deveria ser realizado para, de facto, valorizar o legado de José Manuel Bastos Nunes de forma séria e estruturada:
- O que marca de forma genérica o longo percurso de José Manuel Bastos Nunes como judoca e como homem nas grandes questões globais da modalidade tais como: o seu contributo para a História do Judo [aspetos positivos e menos positivos], a sua produção escrita, fotográfica ou declarativa [ evidências que possam ser analisadas, avaliadas e até valorizadas – veja-se, por exemplo, a participação no livro JUDO Ilustrado Kyu & DAN de Kiyoshi Kobayashi- entrevistas concedidas, tomadas de posição em momentos relevantes da modalidade], as razões de um afastamento relativo na fase final do seu percurso.
- Que lições tirar dos modelos de ensino e de treino do judo que se baseiam numa relação impositiva, hierarquizada e com fortes tendências disciplinadoras? Que benefícios podem resultar de abordagens focadas no “exercício da superação” que não são auto-regulados pelos atletas? Que tipo de influência é exercida no coletivo quando a base de progressão é principalmente a imitação de “quem sabe” e menos a liberdade de “aprender co-criando”?
- Que efeitos têm na prática desportiva e no acompanhamento de atletas a valorização de atividades exteriores à modalidade, como a caça, a pesca, as caminhadas na natureza e sobretudo o convívio entre amigos e a cumplicidade de longos anos com formas de vida marcadas pela simplicidade?
Desta forma poderiam ser aprofundadas, para benefício do judo, matérias diversas que remetem para José Manuel Bastos Nunes que nos deixou há um ano.