25/04/2025

Biografia, falar de Kiyoshi Kobayashi

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Um samurai em Portugal [1]

Por Frederico Salgado, in Judo Ilustrado KYU&DAN – Mestre Kiyoshi Kobayashi

(Biografia na reedição e reimpressão da 1ª edição, aumentada. Centro Cultural Kobayashi | 2016]).

Falar sobre o Mestre Kiyoshi Kobayashi é, simultaneamente, uma honra e uma responsabilidade. Honra porque me sinto lisonjeado pelo convite feito para participar em tão ilustre obra e justa homenagem. Responsabilidade por eventualmente não conseguir corresponder ao desafio lançado, pois a dimensão do Mestre e da obra que nos legou, dificilmente encontrarão adjetivos que traduzam a sua grandeza. Por outro lado não pertenço à geração dos judocas mais velhos e só conheci o Mestre quando iniciei a prática, em 1970. João Taborda, aluno do Mestre e meu primeiro treinador, deu-me a conhecer “lenda” do Mestre. Mais tarde conheceria pessoalmente o Mestre mas não na melhor das circunstâncias. Numa das minhas primeiras competições, ainda como 4º kyu, o Mestre reduziu, em pleno tatami, uma luxação no meu cotovelo esquerdo. Dentro do azar de então, um privilégio. Depois, pude apreciá-lo enquanto árbitro, tomando-o como modelo, não só pela qualidade técnica, mas também pelo estilo determinado e decidido como dirigia os combates. E, não menos importante para a minha formação enquanto árbitro, as pequenas mas incisivas preleções e feedbacks que dava a todos os árbitros no final das provas em que participava, contribuíram decisivamente para que me envolvesse e ganhasse gosto por esta importante área da modalidade. Mas foi bastante mais tarde e por inerência das funções que exerci na Federação Portuguesa de Judo durante 13 anos que, ao conviver mais de perto e amiúde com o Mestre, pude testemunhar a sua dimensão e a do seu trabalho em prol das culturas nipónicas e japonesas e da aproximação entre Portugal e Japão, através do Judo.

Falar de Kiyoshi Kobayashi, carinhosamente conhecido como KK ou, simplesmente o Mestre, é falar da história do judo em Portugal pois só assim poderemos dimensionar a importância decisiva do seu trabalho.

Yuzo Hirano no Porto

Data de julho de 1906 a apresentação do ju-jutsu em Portugal, feita entre combatentes profissionais, não japoneses. No entanto, considera-se que o primeiro contacto com o ju-jutsu se dá através duma demonstração pública feita por tripulantes de dois navios da Armada Japonesa ancorada em Lisboa, o Tsukuba e o Chilone, em Agosto de 1907. O primeiro professor de judo fixado em Portugal, no Porto, chamava-se Yuzo Hirano. Conhecido pela imprensa da época como Kirano, terá atuado em Lisboa em janeiro de1910 [1] e no Porto entre julho e agosto do mesmo ano, tendo vindo a falecer, afogado, na praia de St.ª Cruz, em 1915.

Seguiram-se-lhe Sada Kasu Uyenishi (também conhecido por Raku), acompanhado por Deku, Taki e Yuki Tani que efetuaram demonstrações e combates em Lisboa e Porto. Por essa altura também estiveram entre nós Yamaguchi, Magiro e Hayashi.

A defesa na rua

No Porto, em 1914, Armando Gonçalves, que terá sido discípulo de Hirano, publica o livro “A defesa na rua”. Em 1936, a PSP do Porto inclui a prática do ju-jutsu nos programas dos cursos dos seus agentes, sob a instrução de Armando Gonçalves. Em 1947, António Correia Pereira, primeiro português cinto negro, 1º Dan, registado no Kodokan funda a Academia de Judo, agregada à Academia de Budo. No mesmo ano, durante uma temporada, Masami Shirooka, permanece na Academia de Budo. A Academia de Budo [2] é a primeira instituição onde se ensina Judo em Portugal. Em 1955 o francês Decruet, 1º Kyu e Mestre de Armas, ensina na Policia Militar em Mafra. Ainda em 1955 Henry Bouchend’Homme, 1º Dan e professor de Educação Física, começa a ensinar judo no Lisboa Ginásio Clube. Quase na mesma altura chega a Lisboa o Suíço Antony Stryker, 1º Dan, que abre uma sala no Largo do Intendente, tendo como um dos alunos, José Manuel Bastos Nunes.

Fundar um clube

Em 1957 alunos de Henri Bouchend’Homme e de Antony Striker, forma a ideia de fundar um clube. Surge então o Judo Clube de Portugal como primeiro clube de judo nacional, embora só se tenha formalizado a 12 de Julho de 1957, precisamente um mês após a formalização do Clube de Beja. No Porto, em meados dos anos 50, Manuel Reis, que fora aluno de Armando Gonçalves, lidera a formação do Circulo de Judo do Porto, antecessor do Clube de Judo do Porto. Manuel Reis conheceu um Mestre francês, Hugnet, que estava de férias no extinto Parque do Lima. Não podendo corresponder ao desejo [3] de Manuel dos Reis para ficar em Portugal, enviou para o Circulo de Judo o irmão, Jackie Hugnet, 2º Dan, que ali permaneceu cerca de uma década. Nessa época, colaborou também o francês Gilbert Briskine, 4º Dan de Judo. Em Janeiro de 1958, de regresso ao Japão, a convite do Judo Clube de Portugal, Kiyoshi Mizuno, 6º Dan, permanece uma semana entre nós. Em Agosto de 1958 vêm a Lisboa Ichiro Abe, Kiyoshi Kobayashi e o 1º Dan belga Lannoy-Clerraux. Deslumbrados com a técnica e eficiência de Kiyoshi Kobayashi, os praticantes da altura convidam-no a vir para Portugal.

História de vida

Kiyoshi Kobayashi, nasce a 9 de Abril de 1925, em Morita, concelho de Yamada, na província Gunma-Ken, no nordeste da região Kanto, bem no coração do Japão. Filho primogénito de Juntaro Kobayashi, dono de uma empresa de aviação, e de Tomo Kobayashi, entra para a escola com 6 anos de idade. Começa a praticar judo na escola de um tio. Com treze anos de idade, cinto negro, o jovem Kiyoshi Kobayashi, obtêm o título de campeão da escola que frequentava e aos 15 ganha um torneio interescolar. Aos 16 de idade foi estudar para a Universidade de Nihon, em Tóquio, e inscreve-se no Kodokan. No Kodokan estudou medicina oriental, nomeadamente técnicas de recuperação de lesões que tanta e merecida fama lhe viriam a trazer e que beneficiaram tantos portugueses. Kobayashi, com 19 anos de idade, interrompe os seus estudos universitários para integrar a força kamikaze (vento divino) do seu país na II Guerra Mundial, tendo sobrevivido a 3 missões suicidas. Nas primeiras duas o avião avariou-se, tendo que regressar à base. Na terceira, o avião despenhou-se, o piloto morreu e Kobayashi sobreviveu ao salto de paraquedas que não abriu, com as duas pernas e quatro costelas partidas. Após recuperar os sentidos conseguiu fazer umas talas e arrastar-se até à aldeia mais próxima onde foi socorrido. Diria mais tarde que não tinha conseguido servir bem a sua pátria por não ter morrido ao seu serviço. Após a rendição do Japão aos Aliados, em 1945, Kobayashi, com 20 anos de idade, retoma os seus estudos universitários. Em 24 de Outubro de 1946, com 21 anos de idade, casa com Shizue Taniai. A 26 de Outubro nascerá a filha Sachiko.

Artes marciais

Proibida a prática de artes marciais no Japão, Kobayashi é um dos cerca de três mil especialistas de judo e kendo, que passam a acompanhar as forças aliadas com a dupla missão de proteger os estrangeiros da população japonesa, versada em artes marciais e de evitar discretamente os eventuais excessos dos militares estrangeiros contra o povo japonês. Passada esta fase e com a rápida recuperação do Japão retomam-se as antigas tradições culturais do país. Decide então o Governo japonês enviar especialistas em artes marciais por todo mundo, para divulgar as tradições nipónicas. Uma vez mais, Kobayashi faz parte do lote dos escolhidos e aceita a nomeação. Deixando a família no Japão, começa o seu périplo pela Europa, a América e o Médio Oriente. Entre 1952 e 1958, Kobayashi visita os E.U.A., diversos países da América Central, Egipto, Síria, onde permaneceu dois anos e meio, Arábia Saudita, Grécia, Itália, Alemanha, Grã-Bretanha, França e Bélgica até que, em Agosto de 1958, respondendo a um convite, já com dois anos, do Mestre Ichiro Abe, visita Portugal com este e com o belga Lannoy-Clerrau, sendo acompanhados pelo francês Bouchend’Home e pelo suíço Antony Stryker que já ensinavam judo em Lisboa.

KK em Lisboa

Encantados com a técnica e eficiência de Kiyoshi Kobayashi, os judocas de então fazem-lhe um convite para vir para Portugal. Apesar da vontade do governo japonês para que Kobayashi continuasse a desenvolver o judo na europa e, em particular, na Bélgica, Kobayashi volta a Portugal em Novembro desse mesmo ano, respondendo a um convite do Instituto Nacional de Educação Física (Faculdade de Motricidade Humana, atualmente) para lecionar durante dois anos, ao abrigo dum contrato entre os Governos Japonês e Português. O médico Afonso Ribeiro deu um contributo decisivo para este desenlace, ao estabelecer os contactos com as autoridades portuguesas. Cumprido o contrato, apesar dos convites doutros países, já não conseguiu partir. A par do INEF, continua a desenvolver a sua atividade no Judo Clube de Portugal, Clube Shell, Judo Clube de Beja e INEF, normalizando as técnicas e melhorando o plano competitivo. Torna-se docente da Escola Naval, Escola de Fuzileiros, Academia da Força Aérea, Escola Superior de Polícia, Academia Militar e Sporting de Portugal, onde granjeia o respeito, admiração e amizade das altas patentes e dirigentes.

De carocha pelo país

Determinado, Kobayashi desdobrava-se para dar apoio aos diversos clubes e instituições. De “carocha” ou comboio, não deixava de assumir o que considerava ser o seu desiderato. E, apesar das iniciais dificuldades pessoais, era frequente Kobayashi assumir o jantar dos seus alunos, quer em sua casa quer numa conhecida cervejaria em Campo de Ourique, após os treinos. Com o desenvolver da modalidade sob o forte impulso do Mestre, começa a sentir-se a necessidade da criação dum organismo oficialmente reconhecido, que organize, oriente, fomente e divulgue a modalidade. O Prof. Duarte Leal encabeça a Comissão Organizadora da FPJ e a 28 de Outubro de 1959 nasce a Federação Portuguesa de Judo, sendo o Judo Clube de Portugal seu sócio fundador, assumindo as funções federativas até 1962. Em 1959 realiza-se o 1º Campeonato Nacional Absoluto, no Estádio Universitário de Lisboa, tornando-se Arlindo de Carvalho o primeiro campeão nacional. A primeira prova internacional em que Portugal participou foi no encontro Madrid-Lisboa onde José Manuel Bastos Nunes, com apenas 60kg de peso, obteve a primeira medalha internacional para o país, ao classificar-se em 2º lugar.

Em 1960, a mulher e as filhas juntam-se ao Mestre, em Lisboa. Até 1967 as filhas estudam no colégio americano e treinam judo com o pai. Partem nessa altura para os Estados Unidos da América onde a Michiko e a Sachiko se viriam a formar, respetivamente, em estomatologia e fisioterapia.

Internacional

Em Maio de 1960, no Congresso da União Europeia, em Amesterdão, é aceite o pedido de filiação da FPJ. Em 1961 Portugal torna-se membro efetivo da UEJ, participa no Campeonato da Europa, em Maio, e no primeiro Campeonato do Mundo e Congresso da Federação Internacional de Judo, em Dezembro, em Paris, representada por Edmundo Pires e Carlos Madueno Saraiva. Kobayashi liderou como treinador as respetivas equipas. Portugal passa a participar regularmente em grandes provas internacionais, nomeadamente Campeonatos da Europa e do Mundo e Jogos Olímpicos. Em 1964, participa nos primeiros Jogos Olímpicos de Judo, através de Fernando Costa Matos que foi o Porta-Estandarte.

Vida familiar

Entretanto, Kobayashi desenvolve uma relação com uma enfermeira do Hospital de S. José, Maria Teresa dos Santos Caneço, que fazia ginástica no Ginásio Clube Português e que lhe foi apresentada pelos seus professores de ginástica. Porém, Kobayashi teve que regressar ao Japão devido ao facto dum irmão se encontrar numa fase terminal de vida, onde permanece cerca de três meses. Quando regressa a Portugal, com a mulher e as duas filhas, Michiko e Sachiko, que o Mestre tinha assumido, de acordo com a tradição japosesa, depara-se com a gravidez da namorada portuguesa. Renato Santos, único filho de sangue do Mestre e 1º filho na árvore genealógica japonesa, por ser rapaz, nasce a 13 de Novembro de 1964. De acordo com a tradição e educação do Mestre, esta situação não poderia ser assumida oficialmente e Renato cresceria longe do pai até aos 8 anos. A mãe foi-lhe contando aos poucos pormenores sobre as suas origens e inscreveu-o no judo. José Manuel Bastos Nunes, aluno predileto do Mestre, seria o seu professor, desconhecendo a sua origem. No entanto o Mestre providenciou sempre o sustento da família e acompanhou de perto a educação do Renato. Mais tarde o Mestre pediria a Bastos Nunes para “tomar conta” do filho.

Tatamis na alfândega

Em 1967, a Federação Portuguesa de Judo organiza os primeiros campeonatos internacionais em Portugal, o Campeonato da Europa de Esperanças e Juniores, no Pavilhão dos Desportos de Lisboa, onde Fernando Almada obtêm a primeira medalha para Portugal, em campeonatos da Europa, a Medalha de Bronze. Pela primeira vez a nível internacional, um português, Afonso H. Ivens F. Maia Loureiro, arbitra nestes campeonatos. Só com a empenhada e hábil intervenção do Mestre Kobayashi, junto do Mestre Nagano, no Japão, que forneceu os tatamis para a prova, e do governo português, do qual obteve não só a isenção do pagamento (incomportável para a organização) dos direitos alfandegários dos tatamis, como também apoio direto para a realização da prova, após exposição da situação a Salazar e ao Ministro da Economia Correia Oliveira. Em 1967, Fernando Almada conquista a primeira medalha em Campeonatos da Europa, concretamente no de Juniores, em Londres, obtendo a Medalha de Bronze. O judo continua a crescer sustentadamente e a afirmar-se no panorama desportivo nacional.

Continua Artigo no Judo Magazine O Judo depois de Abril [2]

* 2010 no original

** Academia de Judo no original

*** Deseja no original

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