25/04/2025

100-KK O elogio de Kobayashi ou o respeito honesto 

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Um centenário repleto de afetos e de reflexões pertinentes 

OPINIÃO – Carlos Ribeiro, Editor Judo Magazine

Não existirão grandes dúvidas sobre o sentido geral que deve presidir às comemorações do centenário do nascimento de Kiyoshi Kobayashi, uma figura ímpar da cultura e do desporto ligada simultaneamente ao Japão e Portugal.

Trata-se de uma personagem particularmente relevante de um processo histórico que influenciou vários aspetos particularmente relevantes do desporto, da medicina e da cultura no nosso país. Kiyoshi Kobayashi marcou instituições, coletivos, pessoas e gerações por razões diversas que no cômputo geral são positivas, devendo ser valorizadas e disseminadas. 

Mas não há pior forma de celebrar ou homenagear uma pessoa que a endeusar e a sacralizar numa espécie de redoma de intocabilidade. Há quem pretenda, mesmo que involuntariamente, retirar o sentido humano que Kiyoshi Kobayashi incorpora no seu percurso de homem, cidadão e judoca. Isto através de discursos de valorização sem limites, por vezes com linguagens e declarações mais próximo das seitas religiosas que de coletivos adultos e livres como se deseja que a comunidade do judo seja.  

O que podemos destacar da vida de um homem a quem foi colocada uma missão de intervir, com os seus saberes peculiares, em processos de desenvolvimento desportivo e cultural em Portugal?  

A estratégia do Carocha

Talvez a primeira grande constatação radique na opção estratégica de promover desenvolvimento através do exemplo. Ou seja, o judo em Portugal cresceu e ganhou solidez a vários níveis, porque Kiyoshi Kobayashi meteu “as mãos na massa”. Não se limitou a ser o “grande mestre japonês” e meteu-se à estrada, percorreu terras e localidades e “deu o exemplo” em todo o lado. Podíamos chamar a esta faceta empreendedora e de trabalho de formiguinha “ A estratégia do Carocha”

A segunda vertente deste mecanismo de difusão e de envolvimento de antigos e novos interessados que acabaram por influenciar o crescimento do judo a nível nacional consistiu na qualidade e nas competências técnicas e competitivas de Kiyoahi Kobayashi.

O judo tecnicista de Kobayashi seduzia, todo e qualquer um. As suas mãos de maestro e o seu sentido superior do desequilíbrio transformavam as técnicas de projeção e de imobilização em paradigmas do bem fazer. 

A estratégia da acupuntura

Noutra dimensão, a da prática da medicina oriental, Kiyoshi Kobayashi teve que remar contra a maré e lutar contra o preconceito. Nesse plano a paciência e consistência do pensamento oriental levou-o acreditar que o exemplo das boas práticas acabaria por se transformar no melhor mecanismo de persuasão para os desconfiados e os céticos. E nesse plano teve pleno sucesso e reconhecimento institucional e profissional. 

Legado

Assim, tendo em conta um percurso pessoal e profissional peculiar, podem ser destacadas vertentes tais como: 

  • O desenvolvimento de uma modalidade, num país dominado pelo futebol, que ganhou relevância ainda antes do 25 de Abril e que depois de 1974 foi considerada prioritária pela Direção Geral dos Desportos; 
  • A estruturação, ainda antes de toda e qualquer outra modalidade neste universo, de uma base organizativa e institucional; 
  • A consistência técnica nos diversos planos, tais como as graduações e a arbitragem, que cimentaram critérios seguros e rigorosos para os praticantes e clubes; 
  • A existência de uma referência pública para a modalidade atribuindo-lhe credibilidade e segurança nomeadamente nos média e nas interações com as instituições locais. 
  • A oferta de novas soluções no campo da medicina desportiva, prestigiando o judo como modalidade com recursos próprios e peculiares, 
  • A afirmação de uma cultura baseada nos conhecimentos ancestrais numa fase histórica de “revolução cultural” e de início da pós-modernidade que tendencialmente rejeitava o regresso ao passado e os valores do património cultural imaterial. 

Muito poderia ser dito e escrito sobre estas vertentes particularmente positivas que surgem de forma ainda incompleta como um legado e como um impacto desportivo, social e cultural. 

O homem e o seu contexto

Noutras dimensões do homem situado no seu contexto histórico e na sua evolução psicosocial poderemos sempre questionar algumas opções e tecer avaliações com um sentido crítico, mas pela positiva. 

Uma delas remete-nos para os modelos de desenvolvimento da modalidade que nem sempre foram pacficos para os protagonistas nacionais e europeus principalmente a partir dos anos 70-80 do século passado. Kiyoshi Kobayashi viveu esta fase de transição entre o modelo de expansão da modalidade impulsionado pelos japoneses no pós-guerra e um modelo diferenciado, trabalhado por europeus, que colocava principalmente ênfase no valor desportivo e social do judo e que implicitamente tinha associada uma relação com a educação física, a universidade, as novas pedagogias no desporto. Esta transição em Portugal terá sido mais demorada que noutros países atendendo aos aspetos culturais e históricos que Kiyoshi Kobayashi representava. Criaram-se tensões de autoridade que acabaram por ser sanadas sem grandes dificuldades e o caminho foi percorrido com resultados positivos na globalidade. 

Outra dimensão neste percurso peculiar remete-nos para a personalidade de Kiyoshi Kobayashi. O seu pendor para o autoritarismo e uma liderança unilateral tinha eventualmente por origem um paradigma funcional de base militar. Não é de estranhar que um jovem que se voluntariou para ações fanáticas e suicidas como foram as realizadas pelos kamikazes japoneses na Segunda Guerra Mundial, agindo contra os soldados e os barcos aliados que desejavam libertar o planeta do nazismo e dos genocídios e crimes de guerra que as tropas nipónicas praticavam na sua área de influência militar, designadamente o Pacífico, tenha incorporado valores instáveis em matéria de relações humanas. Mas mesmo esse sentido autoritário que todos lhe reconheciam tinha aspetos particulares já que a sua flexibilidade e espírito amigável vinha ao de cima nas conversas em pequenos grupos, nas viagens em viatura e nos almoços no “Canas” que eram sempre especiais. 

Um respeito honesto

Uma das formulações infelizes que é recorrentemente utilizada para salientar o papel decisivo e histórico de Kiyoshi Kobayashi no desenvolvimento da modalidade em Portugal consiste em apelidá~lo de “pai do judo”. Na verdade a intenção carinhosa é controversa e até inconveniente. Em primeiro lugar porque não reflete a verdade histórica do judo nacional que teve os seus fundadores e os seus protagonistas históricos antes da sua chegada em 1958. Mas esta razão poderá até nem ser a mais relevante. A conotação de autoridade suprema que o conceito de pai mobiliza surge aqui como totalmente dispensável. A comunidade do judo é composta por homens e mulheres livres que dispensa uma figura paternal, protetora e com autoridade superior.

Kiyoshi Kobayashi foi o grande organizador, orientador e impulsionar do judo nacional na sua fase de crescimento, expansão territorial e consolidação técnica. Às tantas uma formulação mais justa e mais adequada para o papel desempenhado e para o impacto produzido.

Ou seja, o que vale mesmo a pena é olhar para Kiyoshi Kobayashi como homem, com as suas virtudes e as suas fragilidades humanas, e assim sentirmos um respeito honesto. Um respeito por uma vida dedicada ao judo e ao cuidado dos outros. Um legado profundamente humano porque repleto de obras valiosas e de imperfeições. 

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