Ser treinador é muito mais do que entender da parte técnica ou tática de uma modalidade

A VOZ DOS TREINADORES – Tiago Silva | Judo Clube de Portugal

Damos início no Judo Magazine a uma nova rubrica A VOZ DOS TREINADORES que procurará disseminar as formas de pensar e de agir dos treinadores de judo. Como sabemos, o papel de quem orienta atletas e muitas vezes a própria estratégia de desenvolvimento dos clubes desempenha funções centrais na modalidade. Nem todos pensam da mesma maneira e não existe um padrão pré-estabelecido para a organização e dinamização das ações que são levadas a efeito por estas figuras absolutamente decisivas na vida do judo em todo o território nacional. Por isso a partilha de ideias, de visões e de pensamento técnico e estratégico surge como um imperativo para alimentar processos de qualidade crescente numa modalidade que quer ir bem mais além do ponto em que se encontra.

Esclarecemos que nas questões de linguagem, da mesma forma que aplicamos regras para o uso dos títulos académicos e da linguagem inclusiva, os profissionais e semi-profissionais ligados a este desporto serão mencionados apenas pela sua condição de treinadores, termo e conceito formal do sistema de organização desportiva do país. Outras denominações, de uso subjetivo e por vezes de auto-valorização como são, a título de exemplo, mestre e sensei, não serão aqui acolhidos por se situarem num campo de relações de poder e de hierarquia ambíguos por parte de quem os usa ou deseja que sejam usados.

Assim procuraremos focar-nos nas ideias, nos processos de desenvolvimento e nos impactos e menos nos resultados que são muitas vezes a expressão de algo que surge como pontual ou conjuntural. A partir de reflexões individuais iremos à procura de sínteses que nos encaminharão para leituras mais coletiva e tendencialmente úteis para a modalidade.

Damos início a esta rubrica com o treinador Tiago Silva que nos mobiliza para uma leitura profunda de processos de estratégia num projeto que está em marcha no Judo Clube de Portugal.

Judo Magazine

Tiago Silva e Emílio Costa no JCP

Judo Clube de Portugal «Impor, sempre, a tradição com um olhar no futuro» 

por Tiago Silva

O antigo jogador dos All Blacks, Wayne Smith, costumava dizer que: “o sucesso excepcional exige circunstâncias excepcionais”. Esta imagem parece-nos a mais justa e próxima para aqueles que procurarem fazer a sua formação no Judo Clube de Portugal. O desafio, para nós treinadores, está em fazer os miúdos crescerem sentindo que aquele judogi é uma espécie de “manto sagrado”. Não no sentido de colocar pressão em tudo o que fazem, mas sim, no sentido de procuramos todos juntos, deixar o clube melhor do que o encontramos.  

Independentemente de termos tido o primeiro campeão nacional sénior (masculino), em mais de trinta anos, que se possa ser visto como produto da formação da casa, podemos dizer que em pleno 2024 a maior aposta do clube está centrada na sua formação, dos escalões da base. Na criação das tais “fundações” para o enorme “arranha céus” desportivo como base do sucesso competitivo do clube dos próximos anos. 

A própria equipa técnica, está a ser montada para também crescer dessa forma. Estamos a investir em treinadores muito jovens, dota-los dos instrumentos necessários para pensarem o treino e não, o de replicarem modelos. Construírem a sua própria reflexão sobre o processo de treino, servindo o planeamento de um rigor científico que os levará, necessariamente, por caminhos diferentes dos demais colegas. 

Treinadores funcionam em parceria e cooperam tendo em conta os objetivos traçados, Tiago Silva com Emílio Costa no Judo Clube de Portugal

Tal como acontece, por exemplo, com o modelo do andebol do FC Barcelona ou o futebol da Academia do Sporting ou Benfica, nós, Judo Clube de Portugal, queremos saber responder às perguntas: o que é que queremos que os nossos judocas saibam até chegar a juvenis? O que é que eles têm de dominar em termos físicos, técnicos, táticos e mentais até chegarem aos escalões de seleção nacional: (Cadetes, Juniores e Séniores)? Sem perder de vista, naturalmente, a parte mental do treino, que é talvez a com maior peso na performance desportiva. 

A título de exemplo, hoje, olhamos para os maiores nomes séniores do clube, e percebemos que são melhores judocas a nível nacional enquanto juniores e séniores, do que foram em juvenis e cadetes. E isso parece-nos indicar que com todas as virtudes e defeitos, o nosso Modelo de Desenvolvimento do Judoca a Longo Prazo, parece estar blindado para a especialização precoce. Não queremos, seguramente, abraçar o modelo fácil da obtenção de resultados muito precoces na formação e castrar o real potencial dos atletas mais tarde.  

Mas o que também não queremos é que no conflito entre a ambição de crescer e o cuidado de preservar os ritmos certos para certas aquisições, irmos na direcção da espacialização tardia. Dependente da fase em que se entre dentro do nosso modelo para a competição, o judoca será potenciado, respeitando o ritmo da evolução desportiva de cada um, competindo, sempre que possível, no escalão melhor para a sua evolução desportiva. Dentro deste nosso modelo de desenvolvimento do judoca a longo prazo, haverá sempre (tal como nos modelos clássicos do LTPD e LTAD) espaço para as fases: Iniciação, Aprender a Treinar, Treinar para Competir e finalmente Treinar para Ganhar.  

A nossa metodologia de trabalho assenta em princípios que tentamos ao máximo que se aproximem da ciência do treino. Às vezes por brincadeira, temos colegas de outros clubes que nos dizem: – «não é fácil fazer um treino aqui». Talvez porque defendamos um modelo em que por mais técnico e tático que seja um exercício no treino, ou por mais metabólico, não deixa também de ser mental. 

Se é verdade que num desporto colectivo, como por exemplo o futebol, a técnica ajuda-nos a resolver um problema de natureza tática. Se eu tiver a primeira linha de passe coberta por um adversário e se eu tiver mais técnica individual, consigo colocar a bola jogável numa segunda ou terceira linha de passe. No final resolvi um problema tático, porque domino a técnica individual. 

No judo, muitas vezes, acontece precisamente o contrário. Eu posso ter um excelente uchi-mata à esquerda, perante um adversário (destro), se eu não tiver soluções táticas para ganhar a manga e o espaço interior, não vou conseguir executar o meu melhor Tokui-Waza. E, portanto, estou condenando ao insucesso. Isto tem de ser o nosso ADN no treino, dotar os atletas de imensos constrangimentos técnico-táticos para assumirem certos automatismos e procedimentos táticos, que os irão fazer tomar melhores decisões com a informação disponível. E isso, em nossa opinião, pode e deve ser treinado e preparado em cada sessão. 

A relação treinador – atleta é nuclear para o processo de desenvolvimento humano e desportivo

Um judoca sem automatismos na construção dos kumikatas, está, também ele, condenado ao insucesso. Mas um judoca que só vive de automatismos e não pensa, decide e age em fracções de segundo, também não terá muito sucesso no judo. Há determinados procedimentos técnico-táticos que vemos os atletas japoneses fazerem o tempo todo. A forma como controlam a manga, como quebram a base do adversário, como fazem a transição para a luta no solo, etc. São exímios a executar, porque criaram essas rotinas no treino, através de milhares de horas de repetição, com uma tipologia infinita de parceiros e de exercícios, para pensarem o combate dentro de uma certa hierarquia. O modelo que começamos agora a implementar nas camadas mais jovens do clube, pretende dotar os atletas destas questões num futuro próximo. 

É sobejamente conhecido por todas as pessoas do judo nacional, que as grandes referências deste clube são Kiyoshi Kobayashi e José Manuel Bastos Nunes. O tempo verbal é mesmo este, porque sempre assim foi e sempre assim será. Só depois olhamos, para o imenso medalheiro ganho ou coletivamente, ou pelas grandes figuras do presente e do passado. Importa relembrar que dali, saíram nomes como os de Henrique Nunes ou dos atletas Filipa Cavalleri e Michel Almeida.  

Os momentos especiais vividos nas provas

Temos perfeita noção de que qualquer pai com um filho no judo, olhe para o panorama do judo português e diga: «filho, eu quero que tu vás aprender a fazer judo para o JCP». Como uma espécie de selo de qualidade, num compromisso entre clube e família – de que ali, ele aprenderá, não só a ser um grande competidor, mas sobretudo grande judoca. Temos pelo menos essa enorme responsabilidade – o de ser o mais japonês dos clubes portugueses. 

É muito comum no JCP, quando um atleta ganha um nacional de juniores ou séniores, como aconteceu no final de 2023, das primeiras coisas que passa pela cabeça da equipa técnica é exatamente avaliar se: «ganhou tudo por ippon e se com recurso a técnicas diferentes. Se acontecer é porque andamos a fazer alguma coisa de jeito». 

Este novo ciclo do clube começou em setembro, numa aposta claríssima na formação, para que, por daqui a 6 ou 8 anos possamos dizer que temos alguns dos melhores juniores e seniores do país, quer em mulheres, quer em homens. Temos um conjunto de miúdos que nos têm dado muitas alegrias já no decorrer de 2024. Vamos seguramente olhar muito mais para o entusiasmo de cada um destes jovens, do que para o possível talento. Trabalhar sobre o entusiasmo dos miúdos é muito mais promissor, para que possamos ter um futuro de qualidade. Temos a noção exata de que muitos não chegarão ao topo como atletas, outros ficarão pelo caminho, outros ainda, que ainda não se juntaram a nós, levamos apenas uma certeza, qualquer um deles ou a família já perceberam o ADN do clube. Pequenos detalhes, que para nós fazem a diferença: coisas tão simples como a procura do ippon, ou na forma como fazem a saudação ao árbitro. Uma coisa podemos estar descansados, pelo menos para os que já perceberam o que é o clube, ganhando ou perdendo assim o farão. Sempre e sempre. 

Tiago Silva no Judo Clube de Portugal

Ser treinador é muito mais do que entender da parte técnica ou tática de uma modalidade. Muito mais do que saber de certos princípios específicos do treino. É muito mais do que exercer liderança. É muito mais do que as qualidades humanas que se identifica no outro. É mais do que saber compor um planeamento e a distribuição das cargas num microciclo. É seguramente mais do que a soma de todas estas partes. 

À nossa equipa técnica caberá uma parte difícil (porque é sempre uma grande responsabilidade ajudar a formar), mas também a mais prazerosa – ajuda-los a crescer. E nenhum deles chegará ao topo sem desenvolver capacidades de superar as adversidades. A cabeça deles, sempre que for trabalhada, irá transformar potencial em realidade. As lesões, os insucessos, as derrotas, será como um pequeno teste ao seu carácter, à sua fibra. O insucesso não tem que nos definir. Queremos muito também que seja novo no ADN do Judo Clube de Portugal trabalhar todas estas dimensões relacionadas com a Saúde Mental dos nossos judocas. Ajuda-los a desenvolver a tal resiliência. A palavra chave é tantas vezes: “adaptação”. Ver o que o infortúnio traz como oportunidade. 

Fotos Judo Magazine no Judo Clube de Portugal e outras © cedidas pelo clube

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