ENTREVISTA – Afirmar agora que a culpa foi de uma só pessoa é negar que existe uma instituição

Hoje o que é preciso valorizar é a conquista que os seis atletas alcançaram com a abertura que acabou por acontecer

Ana Hormigo não se calou perante a prepotência e a injustiça e agiu em conformidade. Exigiu que os seus direitos de trabalhadora ao serviço da Federação Portuguesa de Judo fossem reconhecidos e acionou os meios legais para os fazer valer. Venceu a causa e o seu despedimento como treinadora nacional foi considerado ilícito pelo Tribunal de Trabalho de Sintra.

Sem processo disciplinar não há despedimento com justa causa. Simples. No mundo das relações de trabalho as dificuldades e as injustiças são muitas, mas ainda prevalece uma legislação de trabalho na qual os trabalhadores se podem apoiar para defender os seus direitos.

Ana Hormigo entrevistada pelo JUDO MAGAZINE

Com este reconhecimento da razão que lhe assistiu a treinadora do Benfica tornou-se um símbolo de um acto de cidadania ativa no mundo do desporto e no judo em particular. Afinal, como os atletas e as atletas que divulgaram a Carta Aberta demonstraram, vale a pena tomar a palavra e agir quando se desejam melhorias para todos.

Entrevistámos Ana Hormigo no Estádio da Luz. Fomos acolhidos pela águia, pelo Eusébio rematador e pelo ambiente de fim-de-tarde que fervilha nos corredores exteriores de uma infraestrutura imponente que é a Catedral, como a denominam os adeptos benfiquistas. Aqui circulam praticantes de várias modalidades, famílias e jovens casais com carrinhos de bebé e miúdos talentosos com camisolas do clube com os nomes dos seus heróis inscritos nas costas.

Na esplanada Vermelho e Branco, à frente da “Official Store”, observa-se a evolução do jogo de futebol em Angra do Heroísmo contra o Lusitânia para a Taça de Portugal. “Como é que está?” pergunta quem passa de forma acelerada a caminho dos compromissos um pouco mais adiante. Acabo de um gole o resto da imperial que tinha à minha frente e caminho em direção à minha interlocutora. Pusemos o futebol de lado e começámos a falar de judo.

Judo Magazine [JM] – Passados muitos meses sobre o despedimento agora sentenciado como ilícito, em que ambiente ocorreu este ato protagonizado pela Federação Portuguesa de Judo?

Ana Hormigo [AH] – Já não gosto muito de recordar esses acontecimentos. É algo que passou e ainda bem que lá ficou no passado. Mas é um facto que naquela altura sentíamos que estávamos a perder a equipa. Existia um estado de grande saturação. Chegámos ao ponto de alguns atletas terem adiantado que iriam desistir porque não aguentavam mais.

Sempre fui pelo diálogo e na minha função de representante da instituição procurei sempre fazer uma ponte entre os atletas e os dirigentes. Mas chegou uma altura que o grau de saturação era tal que os atletas e as atletas revelavam uma grande instabilidade nos treinos. Sabemos que a parte física é muito importante mas a psicológica também o é.

Se a cabeça não está bem de nada vale um grande planeamento físico porque tem que estar tudo a funcionar. É um todo.

Não era uma situação saudável

Apercebi-me que aquele processo de preparação não ia resultar. Estar todos os fins-de-semana em seleção tornou-se motivo para um enorme desgaste pessoal. Não era uma situação saudável e não iríamos atingir os objetivos.

Apercebi-me que aquele processo de preparação não ia resultar. Estar todos os fins-de-semana em seleção tornou-se motivo para um enorme desgaste pessoal. Não era uma situação saudável e não iríamos atingir os objetivos.

JM – Como é que a situação que estava a ser vivida em surdina e de forma interna ao grupo de atletas acabou por vir a público e surgir como um problema para toda a modalidade?

AH – Os atletas sempre se foram adaptando mas aquela bolha na qual viviam, mesmo após a pandemia, já não lhes servia. Precisavam de mais. E nós sabemos que atletas deste nível, de Alto Rendimento,  precisam de condições máximas, ora o que lhes estava a ser oferecido eram condições mínimas. Impunha-se que treinassem com atletas do mesmo nível. A máxima do judo “precisamos dos nossos adversários para evoluirmos” também aqui se aplicava. Era isto que estava em cima da mesa, não era nenhum capricho. Tratava-se de uma reivindicação de abertura no modelo existente, com objetivos desportivos. Mas a situação descambou e ofenderam-se atletas alegando que estavam a ser caprichosos e que não queriam trabalhar. Quem conhece esta equipa sabe perfeitamente que isso é um insulto. A Telma Monteiro foi gravosamente ofendida e isso não tem perdão. Se havia alguém que não precisava de reclamar fosse o que fosse era a Telma. Mas ela teve uma grande coragem, ela e as outras e outros,  Os dirigentes da federação mentiram, bombardearam estes atletas nas redes sociais e nós tivemos que os manter motivados e neutralizar as tentações de abandono.

JM – E quando é que a Ana Hormigo decidiu que deveria intervir de forma mais direta na situação e sair da posição de mediação que ocupava até então?

AH – Na reunião havida com a direção da FPJ, realizada por pressão dos atletas é um facto que a Equipa Técnica ficou calada perante tudo aquilo que foi dito. Depois assumi que não fazia parte do meu caráter manter silêncio face às afirmações que foram proferidas e tomei posição. Hoje estou satisfeita por o ter feito porque as coisas evoluíram e, para os atletas, houve claras melhorias e isso é o essencial. 

Apesar de terem sido seis atletas a dar a cara, o impacto positivo que resultou da ação corajosa que desenvolveram foi para todas as seleções. Eles deram a cara pela seleção e não por eles próprios. No fundo, como atletas de Alto Rendimento,  deram mais um exemplo de conquista. Eles conquistam estes direitos por mérito próprio e em resultado de um trabalho duro e permanente e das vitórias que alcançam. Não precisam que lhes dêem seja o que for de mão-beijada.

Ainda hoje estão à espera de uma palavra da instituição Federação Portuguesa de Judo. Agora é fácil afirmar que se quer paz e tranquilidade mas o que é certo é que até hoje, a instituição FPJ ainda não teve um gesto para com estes atletas.

JM – Para além dos aspetos desportivos, emocionais e até pessoais que estão presentes neste processo haverá outros, de natureza institucional, que deverão ser tidos em conta e até avaliados?

AH – Quando se assumem cargos numa instituição assumem-se simultaneamente responsabilidades. Afirmar agora que a culpa foi de uma só pessoa é negar que existe uma instituição e que os dirigentes representam essa mesma instituição. Os atletas não foram protegidos naquela altura e a culpa parece querer morrer solteira. Houve a mudança de uma figura mas a equipa manteve-se a mesma. Ora o impacto desta atuação dos dirigentes da FPJ afetou todos os setores da modalidade, a competição, a formação e a organização das atividades. Trata-se de responsabilidades perante a modalidade e até a própria sociedade. 

Posso referir a minha própria experiência. Tive uma reunião com toda a Direção da FPJ por causa do projeto olímpico e dos atletas do Benfica. Dois dias depois recebi uma carta em casa a despedirem-me. Não tiveram a coragem de me dizer cara-a-cara o que já tinham decidido a meu respeito. Isto diz muito do caráter das pessoas. Repito não estava só uma pessoa, estava a Direção completa. 

Recordo que a Bárbara Timo tinha acabado de ganhar uma medalha no Campeonato do Mundo e para além de nunca terem dado uma palavra a felicitar a atleta pela sua enorme conquista, dispensaram os meus serviços que era a sua treinadora.

Contam-se pelos dedos das mãos as medalhas alcançadas em Campeonatos do Mundo, mas não houve qualquer reconhecimento, nem um telefonema à atleta.

JM – Haverá alguma explicação para este aparente paradoxo que reside na existência de uma dinâmica forte que tem por base os atletas do Benfica que são numerosos na seleção e uma tensão ou até mesmo hostilidade que os dirigentes federativos revelam pelas suas atitudes face ao clube?

AH – A existir alguma coisa é fora da seleção. Felizmente nós podemos afirmar que dentro do grupo “seleção nacional” não há clubes. Existe um espírito saudável e ninguém liga se uma vitória é do Sporting, do Algés, da Académica ou outro. Sempre me bati por este espírito anti-clubista e ainda hoje é o que prevalece.

JM – O acompanhamento aos atletas da seleção deixou de contar com a experiência da Ana Hormigo. Esta situação enfraqueceu o espírito coletivo que existia antes de ser despedida?

AH – Tenho mantido uma ligação às atividades como treinadora do Benfica. O atual presidente comunicou, em reunião connosco, que seria importante os atletas do Benfica serem acompanhados por treinadores do clube, no quadro da seleção. Não se trata de um privilégio já que outros clubes beneficiam dessa prerrogativa. Aliás nunca deixámos de acompanhar os atletas, a expensas próprias, no período anterior a esta decisão. Achamos que estar com os atletas não é uma formalidade. É uma parte decisiva da cooperação existente entre as partes. Nas pequenas e nas grandes questões um treinador ou uma treinadora deve estar ao lado e estar sempre disponível para apoiar os atletas. É essa a sua missão.  

A seleção

Hoje quando alguns me perguntam se voltava à seleção eu respondo, não!

Gostei muito do que fiz e da forma como o fiz. Passamos com eles uma parte muito significativa do nosso tempo. Eu contei mais de 200 dias por ano. Isto porque cuidamos das diversas vertentes do acompanhamento que não se limita à parte desportiva. 

Hoje quando alguns me perguntam se voltava à seleção eu respondo não! Gostei muito do que fiz e da forma como o fiz. Passamos com eles uma parte muito significativa do nosso tempo. Eu contei mais de 200 dias por ano. Isto porque cuidamos das diversas vertentes do acompanhamento que não se limita à parte desportiva. 

JM – Já é possível avaliar o impacto que teve no judo nacional todo este processo que agora tem um ponto marcante com a sentença do Tribunal de Trabalho de Sintra que considerou o despedimento ilícito?

AH – Muita gente ainda não se apercebeu das consequências gravíssimas que teve este ciclo negativo no estado de espírito dos atletas. Quando alguns deles adiantaram que estavam a pensar pôr ponto final na sua carreira desportiva tivemos que fazer tudo para os aguentar. Trata-se de uma geração de ouro do judo nacional. 

A imagem do judo nacional foi beliscada. Mas eles ergueram a bandeira nacional em muitos torneios e provas.

Lá fora ninguém percebia como é que atletas com aqueles resultados e prestígio estavam a ser humilhados pela sua própria Federação.

Mas hoje o que é preciso valorizar é a conquista que eles alcançaram com a abertura que acabou por acontecer. Hoje muitos atletas mais jovens beneficiam da atuação levada a cabo principalmente pelos seis mais comprometidos. Se têm que agradecer a alguém é a eles, pela sua coragem e espírito de conquista. Uma coisa é certa hoje dormem descansados porque não ficaram calados. Alguma coisa mudou graças a eles. Importa recordar que a linha que orientava o judo naquela fase atribulada baseava-se na afirmação “eu não mudo nada até 2024”.

JM – Será possível ter esperança que no judo haja mais diálogo, mais debate sobre os temas de desenvolvimento e que os membros da comunidade judoca falem e conversem sem receios de serem acusados de se oporem a quem está a liderar a Federação?

AH – Uma coisa é certa o direito de opinião é algo de inabalável. Como costumo dizer “o tempo de Salazar já passou”. Nós somos uma modalidade que tem um impacto muito grande no desporto nacional. E foi todo o desporto que foi interpelado naquela situação crítica. Veja-se a posição do Fernando Pimenta que veio juntar a sua voz aos atletas do judo.

Deviam ouvir mais os atletas que estão no terreno e ouvir a sua voz. 

Os atletas mais novos têm estas referências como para gerações anteriores houve referências como o Nuno Delgado, a Filipa Cavalleri e outros. Mas são os influenciadores dos dias de hoje e eles têm voz. 

As injustiças, quando elas se verificam, acabam por passar porque existe um silêncio à volta delas que facilitam a sua concretização.

JM – Abu Dhabi, como vai ser?

AH – Vão 4 atletas do Benfica a Abu Dhabi. Trata-se de um período do apuramento olímpico muito importante e logo a seguir vem o Campeonato da Europa que se realiza do dia 3 ao dia 5 de novembro em Montpellier. De premeio foi colocado no calendário nacional uma prova que os clubes querem disputar com intensidade porque se trata de um título de prestígio, o Campeonato Nacional de Equipas.

Trata-se uma concentração de provas num curto espaço de tempo que certamente irá colocar os atletas em pressão, às tantas desnecessária.

Teria que haver um pouco mais de cuidado nesta programação. Não estou a dizer que seja só da responsabilidade da Federação é também a nível internacional. Aliás há cada vez mais provas relacionadas com o apuramento olímpico o que coloca os atletas em grande pressão porque todos querem ocupar uma vaga nos 17 lugares disponíveis e também ficar nos 8 primeiros para serem cabeças-de-série. Os treinadores de outros países também se queixam desta situação.

O Campeonato Nacional de equipas é uma prova emblemática e todos gostam, em Portugal, de ver os atletas de topo em cima do tapete a competir. Mas está ensanduichada entre Abu Dhabi e Montpellier e só temos que desejar que as três provas corram bem.

Ana Hormigo, treinadora do Benfica e ex-treinadora nacional da equipa feminina

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