GRANDES ENTREVISTAS – Artur Mata [1]

Esperava-nos à porta de casa com um sorriso tímido que revelava dede logo a humildade que viria a evidenciar ao longo de toda a nossa conversa. Até então só nos tínhamos respeitosamente cumprimentado, ocasionalmente, em provas nas quais Artur Mata tinha arbitrado.

Artur Mata em entrevista ao Judo MAGAZINE

Entrámos e rapidamente partilhámos informações e pequenas curiosidades sobre as nossas famílias. “É o nosso mundo. Podemos ter sucesso em muitas atividades que realizamos mas este é o campo determinante das nossas vidas” começou por declarar depois de uma rápida visita pelas fotografias que as paredes e os móveis  projectavam para os nossos olhos invadidos pela curiosidade. 

O tom estava dado. Artur Mata não é apenas um homem do judo. É antes de mais um humanista, um protagonista da História do judo e do país, com provas dadas nos dois campos que o estruturam como Mestre de Abril.

Artur Mata, Mestre de Abril

Noventa e dois anos

Em maio próximo atingirá a idade de 92 anos. Um longo percurso de vida no qual o judo desempenhou um papel central. Mas foi a sua condição de cidadão e de oposicionista ao regime de Salazar que polarizou a primeira parte da nossa conversa marcada pela informalidade e pelo tom das narrativas da resistência e da luta pela liberdade.

Naqueles tempos organizar clubes e dinamizar associações não era nada fácil. Não se podiam juntar pessoas, a suspeição era enorme. Obter um passaporte era muito complicado.

“Nasci em1932, no dia 21 de maio e, no dia 10 de junho, Salazar tomou posse como Ministro das Finanças. Vivi assim quase todo período da ditadura, conheci  a Guerra Civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial” adiantou-nos com um enquadramento histórico sumário do seu contexto de vida.

A tropa 

Veio para tropa em 1953. Faltavam poucos dias para sair quando rebentaram as primeiras bombas na India. Estava em Campo de Ourique. Os primeiros soldados a partir para o continente indiano foram do seu quartel. Tiveram dois dias para se despedir das famílias e foram enviados de avião para a India. “Pensava que já não ia sair da tropa, as coisas estavam a complicar-se, mas não. Saí” confessou-nos o nosso interlocutor.

A livraria

Artur era cabo. Estava a pensar ficar por ali, no exército, mas um tio que tinha uma tabacaria-livraria na Avenida Guerra Junqueiro informou-o que a empregada tinha casado e que precisava de alguém. Como na altura a mulher dona de casa era regra após casamento, o nosso interlocutor acabou por aceitar e o seu destino ficou traçado. O mundo dos livros entrava na sua vida como mais tarde aconteceria com o judo dpois de umas experiência na ginástica no Sporting Clube de Portugal, na rua do Passadiço.

“Apanhei a ditadura quase toda. Por 48 vezes a Pide entrou na loja para apreender livros. Foram 48 autos de apreensão. Apanhavam os livros publicados para impedir a sua difusão. Nós na livraria nem sempre sabíamos se eram proibidos ou não. Quando vinham e actuavam confirmavam a proibição ao levar os livros que apreendiam. A partir dessas visitas só os vendíamos embrulhados ou por debaixo do balcão” relatou-nos Artur Mata com pormenores que só quem viveu aquelas situações pode narrar. 

O livro de Cunha Leal

Cunha Leal, que era amigo do Salazar, publicava livros. Escreveu o Cântaro que vai à fonte e enviou uma carta  a Salazar a pedir autorização para a sua publicação. O ditador autorizou. No Diário Popular apareceu a notícia do seu lançamento.

“Telefonei à editora Petroni, que tinha sede na rua da Prata e pedi 70 livros. Fui levantá-los num taxi. Na livraria tínhamos três montras, uma maior e duas pequenas. Uma delas foi recheada de livros, catorze julgo eu. Vendi logo onze. Era uma novidade” adiantou-nos. 

No outro dia de manhã já estavam dois pides à espera de Artur à frente da livraria. Passaram auto e levaram com eles uns sessenta. 

O Diário Popular nesse próprio dia informava que Salazar tinha autorizado a publicação do livro. 

“Peguei no auto e na notícia e fui à António Maria Cardoso [sede da PIDE]. Cheguei lá e ordenaram para me sentar. Ali fiquei até às três da tarde. Vi ali muita coisa. Mulheres a chorar com crianças ao colo. Comecei a ficar com algum receio. Quando me chamaram subi as escadas e numa sala escura estava um inspetor e alguém a escrever à máquina. O pide pediu-me para contar a história e perguntou-me porque é que eu estava a comprar setenta livros. Expliquei que a função de um livreiro é ganhar dinheiro com a venda de livros. Foi então que ele se saiu com aquilo que era o seu objetivo Você vai-me dizer a quem é que vendeu os livros que já foram comprados. Caiu-me a ficha e vi logo o perigo em que me encontrava. O que me saiu na altura foi “Eu diria com boa vontade, mas as pessoas passam e compram, não as conheço nem fixo quem são. Mas se quiserem metam-me num carro e damos a volta pelo bairro talvez reconheça alguém“. Queria mostrar boa vontade, mas não tinha intenção de indicar fosse quem fosse” confessou Artur Mata que confirmou a grande capacidade de improviso dos portugueses que eram interpelados pela polícia política e não queriam colaborar com a sua atividade repressiva e por vezes assassina. 

O inspetor ordenou ao Artur que se fosse embora e que levasse os livros. “Acontece que dos sessenta só lá estavam 14. Nem abri a boca. Calei-me e fui para casa. Foi uma experiência aterradora”. 

Livro de Cunha leal e sede da PIDE depois do 25 de abril

O gato e o rato

A maior parte dos pides que vinham à livraria nem sequer sabiam que tipo de livros era necessário vigiar. Traziam uma lista. Mal sabiam do que tratava o livro. Eram geralmente recrutados na província e às vezes mal sabiam ler e escrever.

Para estas situações da PIDE, com a Barata, a livraria acima, existiam procedimentos combinados. 

“Quando saiam de uma das livrarias, da deles ou da nossa, telefonávamo-nos. Assim púnhamos um ou dois na montra, mas escondíamos os outros”.

Tem cá este livro?

O Arlindo Vicente [candidato à Presidência da República pela oposição em 1958] morava no bairro social e Artur Mata era amigo dos filhos. O Fernando Vicente era o mais velho e tinha uma fábrica em Sacavém. Exportava para a Rússia.

“Trouxe-me uma recordação de Moscovo que ainda hoje guardo. Não abri e não abrirei para não estragar. Guarda-a tal como a recebi” recordou, mostrando-nos a peça que tinha guardado em local especial.

O Arlindo Vicente vinha muitas vezes ver os livros e fumar depois de beber café na Mexicana. Os pides andavam sempre por ali. O próprio Silva Pais vinha beber café à Mexicana, um café onde paravam muitos dos oposicionistas ao regime”.

Uma prenda cujo conteúdo permanece inviolado

Judo e antifascistas

Fiz judo, mais tarde, com o José Afonso no Judo Clube de Portugal. Quem também lá andou foi o Tengarrinha. Quando fundou o MDP-CDE veio falar comigo e adiantou que estavam a organizar uma espécie de brigadas e que precisavam de treino para defesa pessoal. Pediu-me para ir dar uma aulas. Acabei por não aceitar. Não sabia bem as consequências que teria para o meu percurso no judo. Na altura estava muito empenhado em progredir porque adorava praticar a modalidade”.

Vespa das sete da manhã

“Ia às aulas das sete da manhã no JCP e quando terminava ia a acelerar, de Vespa, para abrir a livraria às nove horas. Conseguia, ao sábado à tarde, frequentar a aula de competição do Henrique Nunes. Foi importante no meu percurso, aliás ainda fiz com ele o exame para 4º Dan. Mas o meu primeiro treinador, ainda na Coelho da Rocha, foi o Raimundo Silva. Foi aí que comecei a estruturar uma relação com a modalidade que nunca mais terminou.

Continua [Grandes Entrevistas] – Carlos Valentim Ribeiro © fotos CVR/JM

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