ATLETAS | publicado 20 agosto 2022 | ENTREVISTA Carlos Ribeiro JM |Mariana Esteves

O que faz uma atleta nunca desistir? Que ingredientes estão na base da persistência estrutural? Como é possível chegar aos limites e continuar a seguir em frente? Como se mantém, no labirinto das dificuldades, uma rota segura, com sentido e coerência que impede o retrocesso ou até a desistência? Muitas destas interrogações podem ter respostas teóricas. Mas nada melhor que realizarmos um percurso real, pela mão da Mariana Esteves, para encontrar pontos de reflexão sobre algumas das questões críticas que se colocam principalmente aos atletas do Alto Rendimento.

Do Colégio Manuel Bernardes ao Grand Slam de Budapeste 2022 o caminho foi longo e cheio de peripécias. Mariana Esteves anunciou que a sua carreira desportiva como competidora no desporto universitário terminou com a sua participação nos Jogos Europeus Universitários em Lodz na Polónia e ficámos a conhecer os seus planos para o futuro numa entrevista marcada pelo otimismo, pela combatividade e por dinâmicas introspectivas pouco comuns no mundo do desporto.

Guiné-Conacri

Mariana ostenta um dossard nas costas do judogi, em competições internacionais, com as três iniciais GUI em vez de POR. Nada de mais intrigante que esta situação atendendo ao fato da medalhada de bronze nos Campeonatos do Mundo de Juniores de Abu Dhabi em 2015 ter sempre competido por Portugal.

Os laços da família com África e dificuldades encontradas desde há alguns anos a esta parte na gestão da carreira internacional com a Federação Portuguesa de Judo levaram a atleta dos Salesianos a lançar-se numa nova aventura em terras africanas. A participação no Campeonato Africano de Seniores realizado em Orão, em maio passado, foi a consolidação de uma opção cuja meta fundamental é a participação nos Jogos Olímpicos de Paris – 2024 em representação da Guiné Conacri.

Resistência

Na prova realizada na segunda maior cidade argelina que Albert Camus tornou célebre com o seu romance A Peste, na meia-final contra a argelina Yamina Halata, em M57kg, num combate que terminou quando estavam decorridos 4,41 minutos de Golden Score, Mariana foi penalizada com um terceiro castigo, perante uma adversária já muito desgastada e com pouca capacidade de ataque. Acabou por perder por ippon e não chegou à final. Mas no combate confirmou uma das suas características mais relevantes que é a resistência.

E dar prova de resistência não é só uma questão de gestão dos combates no tapete. É matéria que se coloca no dia-a-dia para todo e qualquer atleta que quer atingir os seus objetivos. No caso Mariana combina esta capacidade essencial no judo com uma espécie de obsessão planificadora e organizadora.

Desorganização e aplicação de critérios

“O autocarro que leva os atletas do hotel até ao local da competição está marcado para sair às 10h00. Mas acaba por sair às 10h30. As provas estão agendadas num calendário desportivo com meses de antecedência, mas as viagens de avião são marcadas à última hora. As convocatórias para as provas surgem quando dá jeito, não se enquadram num planeamento rigoroso com o atleta. Recebi a indicação para participar no Grand Prix uma semana antes. E sucessivamente. Para mim isto não funciona. Sou muito controladora do meu tempo, das minhas metas e da organização do terreno em que me movo” adiantou-nos a atleta que partilhou de forma muito direta as perturbações que esta desorganização provoca no Alto Rendimento. Relembrou ainda que as regras e os critérios que os regulamentos estabelecem para aceder às competições internacionais estão bem definidas mas a sua aplicação está cheia de derivações que não se compreendem.

“A falta de rigor e de transparência na aplicação dos critérios para integrar as seleções provocam destabilização e ansiedade nos atletas do Alto Rendimento. Eu não consigo lidar com esse quadro porque é contra a minha maneira de estar no judo” justificou a nossa interlocutora o estado de espírito e o desgaste que a levarão a tomar algumas decisões em relação ao seu futuro como competidora.

Lisboa-Paris-Coimbra

Para Mariana o período mais intenso da pandemia de COVID-19 foi particularmente complicado. A participação nos treinos, a vinda regular aos estágios em Coimbra e a opção que fez de ir treinar uns tempos em França, no SGS em Sainte-Geneviève-des-Bois onde foi acolhida de braços abertos por Celso Martins o treinador e Diretor Técnico do clube campeão de França por equipas, todas estas situações criaram um enorme desgaste que a levaram a admitir que deveria pendurar o fato de judo e passar para um registo mais leve com participações em treinos internacionais a convite de amigas de outros países. Até que surgiu a voz avisada de Celso Martins e a dos seus treinadores de sempre, Eduardo Garcia e Nuno António, e encontrou uma alternativa: recorrer às origens africanas da família e abraçar o Grande Continente, “o país onde as pessoas têm a cara queimada pelo sol” como os gregos se referiam à Aitiópia.

“Todas as pessoas, sem exceção, deveriam um dia visitar África. A África profunda e não apenas a do norte, acessível e próxima dos europeus. Aqui diz-se que os europeus têm um relógio e os africanos têm o tempo. E é verdade que o ritmo é completamente diferente, Existe uma convicção que há sempre uma solução para os problemas que vão surgindo. Aprende-se a depositar energias naquilo que é essencial. São aprendizagens da gestão da escassez que devemos valorizar e também aprender com essas aprendizagens” confessa Mariana que África está a mudar a sua maneira de pensar e de agir e que para ela é importante para o seu foco no objetivo central que tem para a sua vida e atividade atual: estar nos Jogos Olímpicos em Paris em 2024.

O triângulo do equilíbrio instável

Mariana concluiu o mestrado na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa. Realizou um percurso exemplar na denominada carreira dual. Conciliou sempre os estudos com os treinos e com a participação nos desafios do Alto Rendimento. Contou sempre com o apoio dos pais, dos treinadores e dos professores universitários que demonstraram grande flexibilidade. Mas a “brava”, como alguns amigos se referem a ela nunca aceitou uma relação limitada às duas vertentes que o dual pressupõe. Para ela trata-se de um triângulo que incorpora necessariamente uma terceira dimensão, a da vida social.

“Para encontrarmos o equilíbrio necessário e criarmos condições para um desempenho desportivo de qualidade precisamos de estabelecer para nós próprias, em cada momento, o doseamento certo entre estas três vertentes. Não podemos prescindir dos amigos, da vida social e do prazer de estar numa esplanada ou numa discoteca. A capacidade de o fazer de forma adequada torna-se um desafio para cada um e cada uma. Em fases próximas de competições importantes, passamos, cumprimentamos e mantemos a disciplina da preparação física e mental com o foco na prova.” reforçou Mariana a sua visão triangular da gestão da carreira desportiva ao ponto de considerar que em momentos muito concretos, de alguma quebra física ou psicológica, esta linha de conduta torna-se absolutamente determinante.

Mariana em rédea solta

Juniores

1 – O melhor tempo que passamos é o dos juniores. Quando somos cadetes temos muita ingenuidade. Somos loucos Na fase dos juniores continuamos com uma certa frescura mas focamo-nos nos objetivos. O ambiente é de paz e de harmonia,

Limites

2 – Chorei muito nos treinos. Chegar aos limites e continuar é arrasador. O João Pina gostava disso mesmo. Estar na zona dos limites.

Seniores

3 – Quando somos juniores somos mais ou menos das mesmas idade. Nos seniores as idades são muito diferenciadas e o ambiente é completamente diferente, mais fechado. Treinamos com aqueles que são as nossas referências. Com respeito. Respeitando as regras do sistema. Mas uma coisa é certa, no apuramento olímpico as coisas começam a ferver.

Mental

4 – Acordar todos os dia para ir levar porrada é uma loucura saudável. É muito mental A cabeça  é que manda. Se temos necessidade de melhorar fisicamente vamos ao ginásio e se precisamos de mais técnica vamos aos treinos, mas para estar bem verdadeiramente é preciso que a cabeça esteja bem.

Superstições

5 – Temos as nossas superstições. A t-shirt ou as cuecas da prova. As datas para participar com a crença da vitória ou de um bom resultado. Aconteceu-me quando foi Abu Dhabi. Não fui ao Open em Portugal porque a sequência de bons e maus resultados aconselhava-me a guardar para o Campeonato do Mundo de Juniores a minha onda positiva. E assim foi arranquei uma medalha de bronze num Mundial. Só podemos ser supersticiosos.

Paris

6 – Vou fazer férias de judo A partir de setembro vai ser non-stop até Paris Selecionar os Grand Slams  Não podemos esquecer que só temos dois picos por ano. Os picos serão para Campeonato Africano e o Mundial.

Gestão

7 – Já terminei o meu Mestrado em Educação Física. Gostaria de tirar um Mestrado em Gestão. Gosto muito de matemática e dá para complementar. Não me vejo fora do desporto, por certo que poderei virar-me mais para as questões de organização de provas. Há muito para fazer para colocar o atleta no centro dos eventos desportivos. No fundo as competições a nível internacional são antes de mais um “show” nas quais os atletas devem ser apoiados e considerados como pessoas.

ENTREVISTA | Carlos Ribeiro JM

SOBRE O AUTOR | Editor

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *