Telma Monteiro, autoavalia-se para continuar a evoluir
A reflexividade como componente estruturante dos processos de desenvolvimento
Telma Monteiro
Na idade adulta refletir sobre as experiências constitui uma das bases essenciais para a aprendizagem. Por sua vez o conhecimento e até as competências são estruturais para todo e qualquer processo de desenvolvimento. Como sabemos, as teorias da aprendizagem exigem que os mecanismos de apropriação funcionem de forma consistente e só uma atitude de permanente reflexividade cria condições para que o ciclo da aprendizagem encerre com sucesso.
Esta matéria é particularmente relevante para os praticantes de desportos individuais e ainda mais para os atletas de Alto Rendimento cuja progressão assenta num mecanismo complexo que integra necessariamente a sistematização das experiências vividas em contexto de competição.
Sem uma reflexão crítica sobre os acontecimentos do percurso, sempre exigente e tendencialmente atribulado do atleta de Alto Rendimento, certamente o campo de progressão poderá ser o do crescimento, mas nunca o do desenvolvimento. O quadro de atuação de quem compete e se coloca à prova regularmente exige que todos os elementos que organizam os planos de evolução sejam revisitados com profundidade. Nesta operação o ator determinante é o próprio atleta.
Depois do Grand Slam de Antalya, na Turquia, a atleta da seleção nacional Telma Monteiro divulgou nas redes sociais a sua auto-análise relativa ao seu desempenho na prova.
Refletir e prestar contas são exigências dos coletivos aprendentes
Autoavaliar-se e partilhar publicamente as conclusões é coisa rara. Da parte das instituições e dos técnicos que orientam a vertente desportiva do judo nacional, nunca se ouviu uma palavra de balanço ou de reflexão sobre as participações nas provas internacionais. Ao contrário de outras federações, como é o caso da francesa, cujo selecionador nacional partilha no site da FFJDA uma apreciação necessariamente geral sobre o desempenho dos atletas (a parte mais individualizada deverá certamente ocorrer em regime privado e em interações bilaterais), em Portugal nada disso acontece. Não se tiram lições de um conjunto de jornadas de prática desportiva que interessam a dezenas de treinadores e até a centenas ou milhares de atletas.
A coragem da parte de Telma Monteiro em partilhar esta autoavaliação surge aqui como um sinal de maturidade mas também de desafio para todas e de todos aquelas e aqueles que investem as suas vidas em atividade extremamente competitivas, no caso o Alto Rendimento no judo e no desporto. Refletir sobre o que está a acontecer, sobre os desafios que vão surgindo, indo ao fundo das tensões, das vulnerabilidades e também das energias positivas e das potencialidades, tudo de forma direta, sem reservas e com uma intenção de progredir, de ir mais além, surge como uma prova de autoregulação e de autonomia que qualificam os atletas e os capacitam para embates futuros.
O que nos disse Telma?
“Aprendi com o tempo a aceitar as minhas vulnerabilidades e acima de tudo a não as ver como uma fraqueza. Apenas algo que é parte de mim, que posso ou não querer melhorar, que posso ou não querer partilhar. Até porque nem toda gente merece essa parte de nós.
Mas para aqueles que se preocupam e me acompanham partilho um pouco dos últimos tempos e dessa vulnerabilidade.
Ultimamente tenho lidado com uma dor no joelho que me incomoda muito e dizer assim já me parece pouco para expressar o que sinto. Depois de ser operada ao menisco o ano passado, o meu joelho começa ‘agora’ a ressentir-se e a adaptar-se à alteração biomecânica que advém dessa intervenção. Isso faz com hajam muitas compensações e sinta essa dor, que me impede de treinar como gostava. Principalmente quando há mais volume de treino.
As últimas semanas foram duras, de muita dor, frustração e fisioterapia, a tentar entender o melhor caminho pra continuar a evoluir. Quem me conhece sabe o quanto procuro sempre ser mais e melhor e o quanto me deixa insatisfeita não conseguir, por alguma razão, fazer isso”
Telma adianta pormenores da sua condição física e psicológica e revela as dificuldades que tem de enfrentar, adiantado desde logo as suas premissas no plano atitudinal que vão no sentido de ultrapassar todos os obstáculos e atingir os seus objetivos. Esta relação otimista sistemática pode ser considerada voluntarista e até excessiva. Ou não, pode ser a via para incorporar as aprendizagens na ação, numa perspetiva de reflexão-ação. É por esta razão, por esta dúvida crucial sobre voluntarismo ou dinâmica integradora, que o conteúdo da própria autoavaliação é fundamental e que a existência de sistemas de sistematização de experiência em bases coletivas, em complemento ao individual, se tornam uma mais-valia para todos os atletas.
Balanço, leitura do processo e dos resultados
“Antes do Grand Slam deste fim de semana não consegui fazer um único randori (luta) nas três semanas antes. Apesar disso foquei-me em tudo o que podia trabalhar e decidi que queria competir no GS de Antalya. E digo isto sem que seja qualquer desculpa!
O resultado não foi impressionante, ainda que ficar em 7º lugar, seja sempre honroso e duro de alcançar a este nível. Mas acima de tudo, estou muito orgulhosa por ter tido a coragem e ousadia de ter competido. Se fosse pelo meu ego, por tudo o que já conquistei, não estaria feliz, mas ter conseguido estar situação de dúvida e vulnerabilidade, de forma tranquila e focada, deu-me a sensação de total controlo do meu ego e naquilo que realmente importa, ser a minha melhor versão. No fim fez-me sentir muito grata e completa.
Há momentos que são verdadeiramente difíceis mas o mais importante é aceitar a minha realidade e partir daí. Até porque nesses dias e não desisto -mesmo que pense- sinto-me uma verdadeira rock star e isso como um ciclo que é, dá-me mais força pra seguir.
Vou continuar a trabalhar com os meus treinadores, fisios e médicos colegas de treino, de forma a conseguir realizar o trabalho que necessito e evoluir pra ir de encontro aos meus objetivos. E há dias que vão ser difíceis e há dias que vão ser incríveis. No entretanto, seguimos juntos! Obrigada a todos pelo apoio e vamos pra mais, sem mimimi. A vida é só uma e é pra ser vivida em pleno”.
Pôr-se a nu perante milhares de adeptos não é nada fácil. Esta dinâmica de revelação tem efeitos na própria atleta, que tem oportunidade para relativizar as situações e ao mesmo tempo para exercer um gesto de gratidão para com os seus apoiantes relançando o contrato de confiança mútua entre as partes. É também nesta atitude de transparência que o ganho existe. Uma confiança construída na partilha e não principalmente nos slogans vazios de apoio incondicional.
Com ações desta natureza, e vindo de quem vem, a modalidade amadurece e desenvolve-se.
Telma Monteiro
*Transcrições das redes sociais autorizadas por Telma Monteiro